Pandora 20/11/2019Numa época futura, em lugar incerto, os humanos vivem sob um regime rígido e controlador em que o indivíduo não tem importância, a não ser como instrumento do Estado. As casas são monitoradas com câmeras e escutas, os filhos não vivem mais com os pais a partir dos sete anos, conversas privadas devem ter testemunhas e toda e qualquer pessoa deve denunciar movimentos e atitudes suspeitas. Neste mundo vive Leo Kall, um químico que inventa uma espécie de soro da verdade, a kallocaína, com o intuito de obter confissões dos suspeitos mais facilmente.
Como está em fase de testes, Leo tem que recrutar pessoas do Serviço Voluntário de Cobaias Humanas e as revelações que ele passa a escutar neste processo o fazem refletir, uma novidade para um camarada como ele, que sempre se considerara um soldado fiel ao Estado e nunca questionara suas leis.
O mais assustador das distopias é reconhecer o quanto são possíveis e o quanto já se observam em nossas vidas, em maior ou menor grau, vários elementos presentes nelas. Kallocaína foi lançado em 1940 e alguns acreditam que serviu de inspiração para 1984, de George Orwell, de 1949. Já Karin disse ter sido influenciada diretamente por Kafka.
Apesar do tema pesado, a leitura é fluida e a escrita muito agradável. Quando começa o envolvimento de Leo com os voluntários e sabemos de suas condições de vida é que tudo vai ficando mais triste. Cobaias não são nomeadas, são conhecidas por número; sofrem diversas sequelas provocadas pelos experimentos e dificilmente constituem família em razão da natureza de seu trabalho. Em geral parecem ser muito mais velhas do que são, são tristes e melancólicas. Mas o importante é servir ao Estado!
No posfácio, Oscar Nestarez faz um paralelo entre a opressão dos cenários de Kallocaína - os apartamentos, o laboratório, os auditórios, a sede de polícia etc são todos subterrâneos - e a depressão da autora. Karin foi uma poetisa muito aclamada em seu país, a Suécia; além de escrever ela também era desenhista. Quando era universitária, filiou-se ao Claré, um movimento internacional de trabalhadores e transitou entre a social-democracia e o comunismo. Uma visita à Rússia de Stalin provocou nela uma grande decepção, já que era uma idealista fervorosa. Abandonou o comunismo e começou a escrever para periódicos liberais. Depois, em visitas frequentes à Alemanha, ver a ascensão de Hitler só a deixou pior. Não ajudava o fato de que sua vida amorosa era tumultuada: ela teve um casamento com Leif Björck, que era mais uma amizade; Gunnel Bergström deixou seu marido, o poeta Gunnar Ekelöf, por ela; e com Margot Hanel, a quem ela se referia como “minha mulher”, teve um relacionamento de idas e vindas. Apesar de fazer tratamento psicológico, Karin Boye cometeu suicídio aos 40 anos. Margot Hanel se matou um mês depois.
Como disse Boye: "Yes, of course it hurts - Ja visst gör det ont” (seu poema mais famoso: Sim, claro que dói).
Notas: Kallocaína virou minissérie na Suécia em 1981 e serviu de base para o filme americano Equilibrium, de 2002.
Sobre o projeto gráfico - Conforme esclarecimento da Carambaia “... as personagens da narrativa estão continuamente sob o controle de um Estado totalitário, que, apesar de invisível, faz sentir sua presença a cada passo. Esse controle é representado aqui pela figura do olho, que permeia toda a narrativa. A serigrafia com tinta fotoluminescente na capa faz com que o olho continue espiando o leitor (mesmo com a luz apagada), além de remeter ao desejo de Leo Kall de ver o céu estrelado, nesta história praticamente passada nos subterrâneos”.