mimperatriz 16/05/2023
Léxico familiar
Sabe aquela conversa que você ouviu ou participou, sentada no sofá da sala ou ao redor da mesa na casa da sua tia, avó ou mãe (minhas referências e lembranças são sempre femininas), recheada de comentários pessoais que em nada mudam os fatos, mas que reafirmam uma cumplicidade única e, de quebra, dá um calorzinho no coração? É o que encontramos nesse livro de Natalia Ginzburg.
?Quando nos encontramos, podemos ser, um com o outro, indiferentes ou distraídos. Mas, entre nós, basta uma palavra. Basta uma palavra, uma frase: uma daquelas frases antigas, ouvidas e repetidas infinitas vezes, no tempo de nossa infância. (?) Uma dessas frases ou palavras faria com que nós, irmãos, reconhecêssemos uns aos outros na escuridão de uma gruta, entre milhões de pessoas. (?) Essas frases são o fundamento de nossa unidade familiar, que subsistirá enquanto estivermos no mundo, recriando-se e ressuscitando nos mais diferentes pontos do planeta (?)?.
Isso é o que mais ficou presente na minha leitura: o poder de Natalia em nos deixar à vontade e íntimos de sua família, mas também de fazer a gente procurar as memórias da nossa família.
Comigo funcionou e atiçou algumas lembranças boas - lembrei muito da minha infância, das minhas tias-avós, de como era gostoso descascar laranjas e dividir com uma delas enquanto conversávamos, de como era difícil não falar ou fazer barulho enquanto uma outra assistia a novela, o quanto era delicioso dar muitas risadas com outra tia e como hoje gosto de tomar algum líquido quente depois das refeições ou antes de dormir, do mesmo jeitinho que ela fazia.
Tudo isso é muito íntimo e altamente reconhecível na escuridão, como bem descreve Natalia. Carregamos uma memória afetiva forte que se mantém na essência e reconhece a fonte original, ainda que replicada para novas pessoas!
E é com essa lembrança que Natália mostra sua família - socialista e judia -, seus amigos e conhecidos como Cesare Pavese, Turati e os Olivetti, e um pouco da evolução do fascismo e do nazismo pela Europa - fugas, esconderijos, a campanha racial e a ocupação alemã.
Mas definitivamente o foco de Natalia é a família e não a guerra. Ela conta uma história gostosa e delicada da porta pra dentro, e menciona uma outra, horrível e bruta, da porta pra fora. Terminei há pouco o livro de Marguerite Duras, A dor, onde ela esmiuça alguns horrores da Guerra, e, ainda que Natalia não siga essa linha, sabemos que esses horrores permaneceram ali enquanto ela narra, de forma muito mais sutil que Duras, suas histórias.
Ettore Finazzi Agró inicia o posfácio com uma descrição sobre isso: ?Esta é a história de uma família de bem, dentro de uma História de tempos sombrios, encharcados pelo autoritarismo e pela repressão, e pelos horrores da Segunda Guerra Mundial.?
Aliás, pensando aqui enquanto escrevo, foi muito assertiva a opção de Natalia em nos presentear com o leve, com o cotidiano vivo em sua memória! Ela não narra o horror de maneira detalhada, mas sim a vida.
O prefácio dessa edição (2022) foi escrito por Alejandro Zambra e eu não posso deixar de contar sobre a coincidência de iniciar a leitura de um livro dele, Poeta chileno, um pouco antes de Léxico - estou na reta final do livro e apaixonada pela sua escrita. Em certo momento do prefácio ele escreve que ?A enorme originalidade desta obra reside em sua tremenda simplicidade.?, e é impossível não concordar.
Léxico foi publicado em 1963 e continua muito atual, justamente por mostrar essa intimidade familiar, tão gostosa e real. É um livro de memórias da Natalia e considerado sua grande obra!
Li ?As pequenas virtudes? antes de Léxico, mas recomendo fortemente a leitura contrária. Em Léxico conhecemos melhor a sua família e amigos e acredito que os contos de As pequenas virtudes fiquem mais claros após essa apresentação feita em Léxico. Vou relê-los em breve, sem dúvida.
Mas não se preocupe com a ordem da leitura! Seja qual for a sua escolha, vai valer a pena. Apenas leia Natalia Ginzburg.