spoiler visualizarTaíse 04/05/2020
Retorno ao lar e a cura de cicatrizes
Adeus, Gana é um livro arrebatador, tanto pela profundidade dos personagens quanto pela sensibilidade ao descrever suas trajetórias. A obra retrata nossa capacidade de recuperação e retomada da vida, independente da profundidade das nossas cicatrizes. Sua leitura me despertou um carinho tão grande, talvez pela identificação: uma família unida, porém distante por quilômetros, o que me faz pensar que somos como sementes soltas no mundo. E ainda assim, nossas raízes originais são a base para definir onde vamos assentar um lar e forma de viver.
A história de uma família reflete a persistência de heranças geracionais, como absorvemos o todo da experiência e não somente os aspectos positivos. Nos transformamos a partir de vivências e isso determina o curso das nossas vidas. Em um movimento cíclico e constante, transmitimos memórias, falas e maneiras para as próximas gerações. No aspecto cultural, existem as dores ancestrais africanas, como sentimentos de abandono, pobreza, racismo e um sentir-se deslocado. Em trajetórias paralelas, os personagens buscam e lutam por seu lugar em um mundo desigual.
O lar é apresentado como resposta para sentir-se pleno na própria existência, tanto em si mesmo quanto em um local e na relação com os demais. Neste sentido, o amor surge como sentimento amplo e nem sempre belo, que pode ser sentido e não expressado, pode ser perdido, nunca esquecido. A imagem de K e F nas maçanetas tem grande beleza, pontuando que partir pode não ser sinônimo de ausência de amor. Podemos aprender a amar e ainda assim falhar ao vivenciar. A obra então reflete que, embora seja impossível proteger quem amamos das dores geradas na vida, é possível vencer sentimentos como medo e orgulho e permanecer.
Já o distanciamento cria espaços de silêncio, ou seria o contrário? De toda forma, trata-se do abismo onde residem traumas e afetos, revolta e redenção. Ironicamente (ou não), um acontecimento de morte provocou uma redescoberta da vida. A família espalhada e desconexa, como poeira no ar ou poeira estelar - uma cisão que começou com o abandono do pai. Em um segundo abandono, mais definitivo, o patriarca acabou por reparar o que estava quebrado. Um rompimento de silêncios, acolhida das dores, reencontro de todos e de si mesmos. Talvez a família não quisesse partir como o pai, “de um coração partido".
Por fim, a genialidade narrativa reside em explorar a sombra psicológica e o diálogo como cura, com potencial transformador de gerar uma torrente. A história é uma jornada interior sobre acolher as próprias dores, os aspectos "feios" ou "sujos" da psique, encara-los de frente e soluciona-los em pequenos passos. A sua maneira, cada personagem visitou aquele espaço esquecido onde está a vergonha, insegurança, raiva, tristeza ou qualquer sentimento que buscamos abafar até que desapareça. Mas não desaparece, e sim reflete em nossas ações diárias mais simples. Como a própria vida, esta jornada é um processo constante. Adeus, Gana ensaia um começo, centelha de esperança ou raio de sol que ilumina o lugar após uma longa noite, e que permite viver com mais afeto.
A paixão e sede evocada pela obra nos deixa curiosos para saber mais. Como será este mergulho na consciência? E a nova relação da família? Um renascer impossível, frágil broto a partir de uma árvore há muito seca. E que ainda assim, resiste e reclama sua existência. O encontro do lar, afinal, um trabalho a muitas mãos.