spoiler visualizarRaphael 09/03/2020
O tempo se despedaça
A primeira parte do romance "Adeus, Gana" demonstra com perfeição a Teoria da Relatividade de Albert Einstein. A percepção do tempo é relativa, variando de pessoa a pessoa e de lugar a lugar. Taiye Selasi opera uma ruptura entre o tempo cronológico e o tempo psicológico ao narrar o momento da morte do patriarca Kweku. O ataque cardíaco, fatalidade sempre instantânea e fugaz, acaba durando além do que deveria (mais de 100 páginas se quisermos apelar para uma medida contável). A memória e o fluxo de consciência retomam as angústias desse personagem e os traumas de seu passado; como resultado, o tempo psicológico estende a dor do infarto e intercala diferentes temporalidades, derretendo o tempo dos relógios como na pintura "A persistência da memória" de Salvador Dalí.
A primeira parte talvez seja o ápice da técnica narrativa de Selasi, que demonstra domínio sobre o fluxo de consciência e coloca-se na esteira de escritores de língua inglesa que a precederam na tradição dos romances psicológicos, como Toni Morrison (sua mentora) e William Faulkner. A técnica perdura ao longo da narrativa, mas nem sempre brilha como no seu prelúdio. Embora bastante polido e auto-consciente para um romance de estreia, "Adeus, Gana" sofre de alguns cacoetes ao sondar a psicologia de diferentes personagens de maneira intercambiável, por meio da onisciência seletiva múltipla, variando o foco entre um e outro a fim de atender a diferentes propósitos de enredo. Como resultado, certos personagens são mais convincentes do que outros e alguns dos muitos dramas familiares do romance são menos aproveitados do que deveriam.
Em contrapartida, ao retratar a experiência da imigração e o afropolitanismo, "Adeus, Gana" destaca-se como um convite à alteridade, uma conscientização literária e poética acerca dos traumas e das conquistas de um grupo minoritário em meio à lógica da globalização. Sendo assim, o romance derrete não só os relógios, mas também as bússolas; é uma ressignificação do TEMPO e do ESPAÇO. Sua parte 2, por exemplo, destaca-se como um contraponto geográfico e cultural à África (seja Gana, seja Nigéria). Ao focar nos irmãos Sai, filhos de Kweku, o ritmo do romance altera-se drasticamente, tornando-se ainda mais lento e desconjuntado, o que pode ser um sintoma da própria experiência migratória, na qual o preconceito é um peso extra na mala (tal como as "Ghana Must Go Bags").
Os traumas vão se costurando e os fios de nylon das diferentes bagagens finalmente convergem na parte 3, que se passa em Gana. A reintegração da família é momento de cura e recomeço, bem como de revelação para muitos dos lapsos narrativos deixados em aberto até então. A costura, no entanto, não deixa de apresentar pequenos buracos, sobretudo em relação à maneira abrupta e não dialógica como foram encerrados os dramas dos gêmeos Taiwo e Kehinde e da própria Sadie, que ironicamente reclama de ser esquecida pelos demais. Apesar desses detalhes, a leitura de "Adeus, Gana" é enriquecedora e formativa estética e culturalmente. Trata-se de um romance lindo e bastante recomendável!
Por fim, é impossível não falar sobre a tradução da Editora Planeta. De fato, o estilo de Selasi é bastante peculiar e nem sempre segue as estruturas sintáticas e semânticas mais previsíveis. Contudo, no original, em nenhum momento esse estilo é ininteligível como acontece em muitos trechos da tradução para o português. Tudo indica que a tradutora responsável não estava à altura de um desafio tão ambicioso, o que resultou em uma tradução excessivamente literal, que não se preocupa em selecionar expressões idiomáticas e formas equivalentes mais propícias à nossa cultura, o que não diz respeito aos vocábulos especificos da cultura africana/afropolitana, devidamente preservados na maioria dos casos, mas sim à escolha por vezes irrefletida de palavras mal combinadas. Certas passagens parecem ter sido traduzidas diretamente do Google Tradutor. Nos casos em que não há marcação de gênero no original, mais de uma vez a tradutora confundiu o gênero dos personagens, problema que poderia ser facilmente evitado com maior atenção ao enredo e à cultura dos personagens. Há ainda os (incontáveis) erros de revisão, que vão desde caracteres duplicados e uso indevido de pontuação até erros gramaticais. É um padrão lamentável para um clube de leitura tão renomado como a TAG - Experiências Literárias. É necessário ter cautela para que isso não se repita.