Érica 08/02/2014
Um mesmo mundo, outras percepções
Na coluna de hoje falaremos d’As Montanhas de Buda (Javier Moro, 2010) – outra aquisição feita no supermercado.
Por falar nisso, deveríamos premiar quem teve essa feliz ideia de dispensar livros em outros estabelecimentos que não apenas em livrarias: realmente facilita a vida da gente. Você vai ao supermercado e, enquanto espera na fila, consulta os volumes disponíveis nas prateleiras que, de caso pensado, são colocadas ali, pertinho dos caixas. E descobre desde os clássicos da literatura brasileira até os best-sellers do momento – que é sempre bom que se diga: nem sempre são “livros agourentos/ que ninguém entende/ mas todo mundo quer ler”, como cantaram acertadamente dois ícones do rock brasileiro, Raul Seixas e Marcelo Nova.
Minha única queixa é que os volumes mais comuns são os de auto-ajuda – que ao lado dos livros espíritas são os únicos que não me despertam a mínima atenção (e olha que eu já tentei lê-los, mas realmente, não tenho estômago: que me desculpem os que gostam).
A capa da edição que comprei é bem chamativa: mostra duas pessoas orientais, de sexo indefinido, muito pequenas e de feições assustadas, tendo atrás delas uma cordilheira. Quando vi, já estava lendo o livro, tal a curiosidade que a sinopse me causou: ele conta a história de duas monjas tibetanas que viveram sob os anos de maior repressão chinesa no Tibete e que, por causa dela, fugiram para a Índia querendo encontrar seu mais sagrado ícone vivo: o Dalai Lama.
Javier Moro fez uma pesquisa muito interessante e em seu relato inclui as experiências das monjas, falas de testemunhas das atrocidades cometidas por soldados chineses, entrecortadas por passagens da vida daquela figura tão intrigante que é Tenzin Gyatso, o atual líder do budismo tibetano, o atual Dalai Lama.
Assim, devido ao levantamento feito pelo repórter espanhol, fiquei sabendo que o Tibete seria tradicionalmente governado pelas encarnações de um Buda, o bodisatva da compaixão. Desta forma, com a morte de um rei, os seus antigos auxiliares começavam a procurar encarnações do mesmo nas crianças em idade apropriada – tal criança deveria passar por testes que incluiriam a identificação de objetos pessoais do falecido, marcas características no corpo, etc. Quando identificada, a pequena encarnação seria então levada para o palácio onde seria educada nos princípios budistas e em várias áreas de conhecimento que úteis para seu período de governo.
Foi desta maneira com o atual Dalai Lama que, ainda hoje, defende através da não violência a libertação cultural do Tibete em relação à China, mesmo que o pequeno país continue como uma província.
Em seu país natal ele é adorado e respeitado como uma deidade encarnada – aqueles que criticam aos budistas tibetanos deveriam lembrar que grande parte das religiões possui seus deuses em forma de gente: ou você se esqueceu de Jesus? A diferença é meramente temporal.
É devido à veneração ao Dalai Lama que as duas monjas Kinsom e Yandol correm risco de vida atravessando as montanhas que separam seu país da Índia: querem encontrar face a face o deus que curará suas feridas e direcionará suas vidas de forma a que elas recuperem a alegria perdida na prisão. As pequenas se conhecem lá, no presídio de Gutsa para onde Kinsom, que inicia a história, é levada por ter gritado “Tibete Livre!” ao ver guardas chineses espancando um idoso.
A descrição do que é feito contra as monjas – que não diferentemente de quaisquer mulheres que dedicam sua vida ao sagrado nas várias religiões mundo afora se mantêm virgens e são pacíficas – é revoltante. As religiosas são espancadas, recebem choques elétricos, passam frio e fome além de sofrerem inúmeras sevícias sexuais, incluindo-se aí o estupro em suas várias formas.
Por ter dado aquele grito, Kinsom é condenada a dois anos de prisão ao final dos quais está alquebrada. É após isto que ela e Yandol resolvem, separadamente, viajar para encontrar com Sua Santidade em seu refúgio na Índia onde ele mantém o Governo Tibetano no Exílio, acolhendo refugiados, educando crianças – tudo isto com o auxílio do governo indiano - para que a cultura tibetana não encontre seu fim.
Para aqueles que amam a cultura – em suas inúmeras formas que incluem os livros e o conhecimento que eles representam - é chocante perceber como bibliotecas inteiras, com manuscritos datados de séculos, foram incineradas pelos chineses durante o primeiro período do domínio do Tibete. Sim, é um lugar comum para ditaduras – ainda assim não deixa de ser um ato chocante.
Porém, é necessário dizer que a tradução para o português, em especial a edição que li, peca em dois momentos: há muitos detalhes que escaparam à revisão, desta forma o livro está repleto de trocas de letras; e não há fotos! O livro trata de uma história real, de trechos da vida de várias pessoas, muitas delas ainda vivas – mas não traz uma foto sequer. Chega a ser um desleixo.
Entretanto, é um livro fascinante, especialmente para aqueles que gostam de experimentar diferentes formas de percepção, diferentes maneiras de se enxergar o mundo.
(publicado no jornal cultural "Conhece-te a ti mesmo")