paloma 30/03/2020
Insegurança e identidade
Estação Atocha conta a história de Adam Gordon, um jovem e promissor poeta norte-americano que acaba de ganhar uma bolsa de estudos na Espanha para escrever um poema sobre a Guerra Civil Espanhola. O livro aborda os dramas existenciais vividos por Adam, que, embora tenha reconhecimento exterior de seu talento, se sente inseguro e um fingidor quanto à sua qualidade de poeta, uma espécie de síndrome de impostor. A história se passa em 2004, ano do atentado terrorista que aconteceu em Madri, na estação de trem que dá nome ao livro e cujo desastre é contado na história.
A língua (inglesa e espanhola) é um fio condutor do livro, refletindo muitas vezes características da relação que Adam desenvolve com os outros personagens, especialmente as mulheres com quem se relaciona afetivamente. Adam e Isabel sempre conversam em espanhol e a comunicação oral costuma ser falha. Ele aproveita os vazios deixados pela incompreensão linguística para não demonstrar seus pensamentos. Usa a pouca fluência na língua como escudo para a exposição inerente ao encontro humano. Ao mesmo tempo, deseja que Isabel projete em suas reticências aquilo que ela acredita que ele deveria ser ou dizer e assim se encante por ele, quando é por si mesma que está se encantando. Em contrapartida, seus corpos conseguem se comunicar e por meio do sexo eles conseguem manter um vínculo. Aqui, há menção ao estereótipo da língua/cultura latina como quente, dramática e apaixonada; e Almodóvar é frequentemente citado para reforçar essa ideia.
Já com Teresa, a relação é oposta. Teresa é fluente no inglês, língua nativa de Adam, e, com ela, ele se sente transparente, sente que ela percebe até mesmo o esforço que faz para fingir ser quem ele acha que deveria ser. Ele se sente bastante atraído por Teresa, mas, mesmo ela demonstrando estar interessada, ele não consegue concretizar o sentimento, provavelmente em função da vulnerabilidade que ela o faz sentir. Além de o enxergar, Teresa é uma mulher erudita, rica, sofisticada e elegante, características que acentuam seu medo de não corresponder ao esperado. Aqui, a frieza da língua/cultura inglesa se opõe ao calor espanhol.
A insegurança de Adam é o ponto mais trabalhado do livro. Ela se revela na busca incessante por muletas que o personagem cria para se sustentar. Ora usa a dificuldade de comunicação para se proteger, ora se vale de substâncias psicoativas, sejam elas legais ou ilegais. Cabe lembrar a função narrativa que atribui explicitamente ao cigarro, como que um apoio, uma terceira perna (Clarice), para situações em que se sente exposto e vulnerável. Reforça sua insegurança o pensamento obsessivo que cultiva quanto ao que os outros acham dele. O que deseja dos outros não é um compartilhamento de experiências, mas apenas reconhecimento. Soma-se à busca incansável por reconhecimento uma certa arrogância do personagem, que lança olhares bastante críticos aos outros, especialmente àqueles que julga serem seus competidores. A arrogância diz sobre um estado disfuncional de exigência de si que invade a relação com o outro. A insegurança de Adam também aparece em seu processo criativo. Ele não enfrenta a página em branco, recorre aos cânones para fazer traduções, em que faz pequenas alterações para soar original. Seguir um caminho já consagrado por meio de traduções é mais uma muleta encontrada pelo personagem que revela a dificuldade que tem de encontrar uma voz própria, que seja reflexo de sua identidade.
A insegurança pode ser impeditiva de se construir uma identidade de si. Adam demonstra conflitos no sentido de não saber quem quer se tornar, onde quer viver, que língua quer falar, com qual mulher quer ficar, se está apaixonado ou não. Todas as questões que desenham um perfil identitário são para ele paralisantes. O paralelo entre Isabel e Teresa representa de certa forma dois trajetos de vida para Adam. Isabel fazia Adam se sentir seguro no silêncio e na incompreensão, já Teresa o fazia se sentir translúcido e vulnerável, obrigado a confrontar seu próprio eu. Nessa toada, vale lembrar que Teresa se descreve como alguém com personalidade de tradutor, revelada na fluidez que possui para transitar entre ambientes, performances e grupo social. Nesse sentido, funciona como um espelho para Adam, espécie de tradutor poético que transita entre países, classes sociais, idiomas e mulheres. Diante da fluida construção que fazem de si, são capazes de mergulhar mais fundo em suas questões existenciais, pois nada lhes prende a uma ideia fixa de si. A vaga construção do eu pode levar a estados paralisantes de medo, mas também a novas experiências identitárias.
Particularmente, gostei muito do livro.