Ari Phanie 19/03/2021Sobre paixões doentias e almas ardentesEu li O Morro dos Ventos Uivantes pela primeira vez em 2013 ou 14, e como acontece com frequência comigo, eu esqueci praticamente tudo, a não ser os nomes Heathcliff e Cathy. Mas sempre soube que se tratava de um romance gótico, e o único escrito pela Emily Brönte que infelizmente morreu precocemente. Então, essa foi uma (re)leitura e quando eu terminei eu fiquei realmente chocada que eu pudesse esquecer um clássico com esse peso.
Eu não tenho certeza, mas talvez o que tenha me feito esquecer a história foi ódio.
Provavelmente, eu devo ter ficado muito puta com esse livro. E a verdade é essa: essa história desperta ódio. Quem chega desprevenido, acha que o livro é a narrativa de um amor trágico. Você foi enganado. O Morro dos Ventos Uivantes NÃO é um romance romântico. Não importa o que vendam por aí com as sinopses e os filmes bonitinhos. É muito simples; dois jovens acham que amam um ao outro, mas são apenas obcecados, e tornam a vida deles próprios e de todos ao redor, miseráveis. Do começo ao final (ou quase isso), tudo é só amargura, sofrimento e tortura. Os personagens vivem esse ambiente tóxico e se tornam tóxicos. É difícil gostar de algum deles, ou são poucos os momentos em que você gosta. E você pode pensar por tudo isso que não vale à pena ler um livro assim. Ledo engano. Esse livro não faz sucesso à toa. Os personagens aqui não se encaixam no que seria “apropriado” para a época, principalmente tendo sido escritos por uma mulher. Se hoje lemos o que Emily escreveu com certa surpresa, imagine o que foi para a época dela escrever um livro cheio de personagens de caráter duvidoso, mesquinhos, manipuladores, cruéis e violentos? Mesmo sob o disfarce de um nome masculino, o livro não foi bem aceito. Fora Heathcliff, os outros personagens não se encaixam nos moldes “bom” e “mau”, eles são mais complexos do que isso. Mesmo Heathcliff não é só mau. Ele é pura e simplesmente produto do que viveu e perdeu, como todos nós. Só que ele teve mais perdas e viveu mais injustiças do que qualquer outro. E como todo oprimido que adoece, ele atua para ser aquilo que tanto odiou e que tanto o fez sofrer. Você não tem empatia por ele, mas consegue perceber o sofrimento dele.
Emily deu tamanha profundidade aos seus personagens que, ora você gosta deles (de alguns, pelo menos), ora você detesta. Esse é o caso, principalmente, da Nelly Dean, Catherine 2.0 e Hareton. Os únicos personagens que se “salvam” são Mr. Lockwood e Edgar Linton. Você até pode dizer que são os personagens mais equilibrados e honrados. Os outros não conseguem essa proeza por muito tempo, e mesmo assim acho que Nelly, Cathy e Hareton acabaram sendo “meus favoritos”, mesmo que na maior parte das vezes, fosse difícil gostar deles, especialmente dos dois jovens.
Como eu disse antes, esse não é um livro sobre amor. É um livro sobre a deterioração humana, sobre uma paixão desgovernada que leva a pessoa ao inferno e à obsessão. E não há redenção ao final da história, mas felizmente há descanso.
Currer Bell vulgo Charlotte Brönte disse que a escrita de sua irmã era ingênua e rústica, obra de um diamante bruto, ainda não lapidado. Sorry, amada, mas eu discordo. A escrita da Emily era crua, e ela teve a audácia de escrever sobre os piores aspectos do ser humano, isso sendo mulher do seu tempo, e se eu não me engano, é a única das irmãs Brönte que teve a coragem de escrever sobre beijos e carícias. Decidamente, Anne não teve essa ousadia. E provavelmente, nem Charlotte (pelo menos, não em Vilette, não me lembro se o fez em Jane Eyre). O fato é que ao ler as cenas de paixão arrebatadora entre Heathlcliff e Catherine, me deixou surpresa. Emily pode ter vivido pouco, e ter tido pouca experiência de mundo, mas tinha uma alma ardente, quis e falou de coisas e sentimentos intensos, sem se importar com as polêmicas que causaria eventualmente. E fez tudo com riqueza de detalhes, seja de cenários, seja de sensações. Novamente, não é à toa que seu livro perdura através dos séculos.
Apesar do que eu possa ter feito soar no começo, eu adorei esse livro. Das Brönte sisters, o primeiro livro de Charlotte (Jane Eyre) ainda é meu preferido, mas O Morro dos Ventos Uivantes e A Inquilina de Wildfell Hall, estão ali praticamente no mesmo patamar; cada uma tendo impresso com genuína habilidade suas próprias características em seus escritos. É pesaroso que as duas mais novas tenham partido tão cedo com tão pouca produção. Mesmo assim, bastou pouco para que elas se tornassem eternas. E eu vou reverenciar essas mulheres para sempre.
P.S.: Essa edição da Zahar é perfeita. Vale muito à pena. Tem textos da Charlotte, Cronologia e Apresentação da história de vida de Emily, e muitas notas que elucidam dúvidas sobre certos termos, mitologia, características de época e até mostram as simbologias da história. PERFEITA!