brunossgodinho 12/04/2020Salinger e o rebelde sem causaEscrito de maneira fragmentária na década de 1940 e publicado como livro após a guerra,
O apanhador no campo de centeio é um livro de uma geração. Parece-me ser essa sua limitação que poderia, ao mesmo tempo, ser considerada ponto forte. Ele se assemelha ao espírito exprimido por
Juventude transviada, baseado numa juventude que cresceu revoltada com e reprimida por uma felicidade artificial, forçada, produzida pelo
American way of life do pós-guerra.
O tema da revolta não impressiona mais a minha geração nem, talvez, as mais novas. Ao menos porque da década de 1980 em diante o mundo passa pela corrosão social e climática intensa, diante das quais a revolta não basta. A solução seria apenas uma: revolução. Por essa razão esse livro de J.D. Salinger pode parecer enfadonho se lido esperando uma mensagem atemporal. Pois não é bem por aí. Ao contrário,
O apanhador é um livro muito bem temporalizado e, por isso, é mais uma fotografia (captura instantânea) do que uma pintura (representação articulada ao longo do tempo).
Recentemente, assisti a um ícone do cinema musical,
Grease, lançado no final da década de 1970 e ambientado na década de 1950. Pouco mais de duas décadas foram suficientes para transformar os anos 1950 em um período glamourizado: do adolescente revoltado, que não vê sentido na convivência e na busca incessante pela felicidade e satisfação pessoais de seus pais e concidadãos mais velhos, passamos ao adolescente revoltado que o é por simplesmente ser
cool. A personagem de John Travolta é uma pessoa com a namorada estrangeira na praia; outra com os amigos da escola. De fato, um rebelde sem causa — totalmente diferente, porém, da personagem de James Dean (que figura nos pôsteres dos quartos das adolescentes no filme de Travolta), cuja angústia é inexprimível diante de seus pais e exprimida em ações inconsequentes dentre seus amigos.
O protagonista de Salinger é em todas as medidas o mesmo interpretado por James Dean no cinema.
Juventude transviada, porém, pareceu-me representar melhor o sentimento de angústia da geração. Ou, talvez, (e agora é o ponto que finalmente queria chegar), o tradutor dessa edição tenha se excedido. Durante a leitura, minha impressão sobre o narrador e protagonista era, para usar uma palavra de seu próprio vocabulário traduzido, de um sujeito fajutão. Um canastrão, enganador, ele sim o verdadeiro
rebelde sem causa. Em retrospectiva, essa impressão pode ter sido causada pelo peso da mão do tradutor.
Em certa passagem dessa tradução, o protagonista chama um colega estudante de "merdinha". Estranhei porque, até aquele momento, não havia essa entonação nas provocações e maledicências da personagem. Curioso, procurei pela internet uma versão do texto original. Fiquei surpreso, então, ao ver que "merdinha" foi evocado do vácuo pelo tradutor. Eu esperava encontrar o típico xingamento do inglês "little shit". Dei de cara com um trecho que, no geral, correspondia a tudo descrito pelo tradutor perfeitamente — exceto esse termo, que inexistia. Não cotejei mais nada. Continuei o livro e me enfezei com o narrador. Terminei insatisfeito, quase dando graças a Deus.
No fim das contas,
O apanhador não é um livro ruim, mas, também não o achei excelente. Pode ser que a mão do tradutor tenha pesado minha balança para o lado negativo; isso só se resolverá no futuro, se um dia estiver disposto a ler o original. Por enquanto, fica a impressão de que poderia ter sido melhor.