Ana Sá 30/06/2023
Muito bom, nota 3!
Quando eu dava aulas de redação (saudades!), uma aluna (engraçada e dramática) certa vez esbravejou: "Ah, Ana, sempre assim: 'Muito bom, nota 6!'". Rindo desse protesto, calmamente eu repeti o que ela já sabia: "Isso mesmo... Você defendeu um argumento crítico, sólido, um argumento 'muito bom', mas escorregou no desenvolvimento...". Uma lacuna aqui, um senso comum ali, um vocabulário limitado lá... Mas argumentos muito bons!
É óbvio que corrigir redação não é igual a resenhar e avaliar um livro, sobretudo no meu caso, que me entrego à paixão/despaixão nas minhas leituras pessoais. Como professora, não há espaço pro meu eventual "gostei/não gostei" na hora de dar uma nota. Já aqui, com a pobi da Le Guin, eu descontei estrelas também (mas não só) pela minha (falta de) emoção. Eu diria que no meio da leitura o livro ficou morno e que o final foi igual ao meio... Achei monótono mesmo, sabe? A meu ver, trata-se de uma ficção científica com pontos fortes no conteúdo, mas crua na linguagem e simpatizante de alguns lugares comuns. Ou seja: uma típica leitura "Muito bom, nota 3!".
O enredo é o seguinte: com a escassez de madeira na Terra, acompanhamos a colonização do planeta Athshe e os conflitos da relação entre os colonos (os "terráqueos") e os creechies (os "nativos"/"indígenas"). São três as personagens principais: Davidson (o colono detestável), Lyubov (o colono gente boa) e Selver (o nativo que faz a ponte entre os dois mundos, assumindo inclusive o papel de tradutor).
Leitoras bem informadas já me disseram que esta talvez não seja uma boa porta de entrada para a ficção de Le Guin, escritora famosa sobretudo pelas obras "A mão esquerda na escuridão" e "Os despossuídos". Ainda assim, acho que consegui encontrar indícios do porquê de a autora ser aclamada por parte significativa do público e da crítica. "Floresta é o nome do mundo" faz uma crítica à colonização bastante complexa, tocando desde questões étnicas e ambientais, até pontos relativos à colonização do pensamento e da linguagem, não necessariamente nesta ordem. O modo como são inseridos elementos como a importância dos sonhos e da ancestralidade para os creechies ecoa (na minha leitura) certos aspectos da cosmovisão de povos indígenas da América do Sul e da África, convidando as leitoras a repensar a racionalidade eurocêntrica. Por exemplo, assim como o líder yanomami Davi Kopenawa afirmou que "os brancos dormem muito, mas só conseguem sonhar com eles mesmos", Selver nos dirá "vocês dormem, acordam e esquecem seus sonhos, dormem novamente e acordam novamente, e assim desperdiçam sua vida inteira".
Não por acaso, me informaram que Le Guin é filha de antropólogos... Coincidência? Acho que não. Aliás, associar o livro à sua biografia só soma positivamente... Uma mulher branca e estadunidense publicar um livro desses na década de 1970 é um pouco fora da curva. E a atualidade do que está escrito ali entristece na mesma medida em que enaltece a obra. Os diálogos de Lyubov e Selver sobre a amizade que surge entre eles a partir de seus esforços conjuntos de tradução da língua de seus povos é bonito e também interessantíssimo em termos linguísticos (eu realmente gostei do jogo de palavras que vai sendo jogando ao longo do livro - "A palavra athsheana para mundo também é a palavra para floresta"). Por outro lado, os capítulos dedicados exclusivamente ao vilão Davidson e aos demais colonos são chaaaatossssss, paradoxalmente são trechos muito objetivos mas quase sem nenhum propósito. Percebi que faz parte do projeto da autora essa mudança de tom, mas achei que ficou destoante demais. Chato, chato.
Mas ainda não falei do maior incômodo: Davidson é um vilão verosímil; como ele, há muitos "colonos" machistas, gananciosos, violentos, opressores etc. 17, 22 etc. Mas na obra essa figura é unidimensional, nada complexa. E isso, pra mim, faz o livro escorregar QUASE que numa visão do "bom selvagem"; me explico: de um lado (na Terra), o pior do ser humano representado em Davidson; de outro (em Athshe), a pureza, a bondade. E digo "quase" porque a obra extrapola sim esse maniqueísmo, mas ao mesmo tempo em que flerta com ele. Sei lá, pra mim faltou complexidade na composição das personagens, sabe? O que vi foram ideias e passagens fortes, poéticas, alternadas com outras meio "pá-pum, é isso aí".
E é isso aí mesmo. É um livro bom. Em alguns pontos, achei muito bom! Mas não entregou tudo que podia ou que parecia prometer. Ou talvez esta seja apenas eu e a minha despaixão por ficção científica que envolva mais de um planeta (viagem no tempo, terrorismo biológico e robôs são bem mais legais, vai!).
Obs. 1: ouvi algumas pessoas relacionarem este livro a Avatar! Eu cheguei a assistir o primeiro filme, mas a minha falta de memória não me permite traçar paralelos.
Obs. 2: estou refletindo aqui e acho que (seriamente) eu recomendaria uma leitura restrita aos capítulos 1, 2, 5 e 8 deste livro! rs.