Gabriel 29/05/2021
Um colosso de melancolia e visões tétricas
Cai de amores por Mariana Enriquez antes de terminar "As Coisas que Perdemos no Fogo"
um Realismo Fantástico Sulamericano sujo, aquele horror vindo do -ou se misturando com- o cotidiano; evocando a tradição do horror gótico, mas profundamente contemporâneo e sociopolítico
quando vi as dicas da caixa #32 do clube Intrínsecos imediatamente me liguei que era algo da Mariana, assinei na hora e aguardei com ansiedade.
O livro começa em 1981, dois anos antes do fim da ditadura argentina, um pai e seu pequeno filho viajam de carro, eles parecem fugir de algo. Juan, o pai, é cuidadoso, sistemático e duro, mas essa dureza vem de um lugar de amor, ele busca proteger o filho. Juan se recupera da uma complicada cirurgia no coração e ambos ainda se recuperam da trágica morte de Rosario, esposa e mãe. em meio à repressão do governo e dores físicas e psicológicas eles senguem para Misiones, passam pelas Cataratas do Iguaçu, o destino é a mansão da família de Rosario, os Bradford, a tradicional e poderosíssima família que tem laços com os militares e outras coisas obscuras (que habitam outro plano), Juan é o médium responsável pelo contato com A Escuridão -a entidade adorada pelos Bradford e a seita que encabeçam-, o única capaz dessa invocação, um processo extremamente custoso (ainda mais para seu coração fraco), e Juan não está disposto que depois de sua morte seu filho seja usado como o novo médium da Ordem. a partir desse ponto o livro se estende por anos, lugares e o passado & futuro de seus personagens são investigados.
e esse livro... não foi a toa que recebeu o Premio Herralde (um dos maiores prêmios para obras escritas originalmente em língua espanhola)
Lembro de no primeiro dia ler 71 páginas e pensar como "Nossa Parte de Noite" é um livro RICO, toda a mitologia desenvolvida por Mariana, todas as informações sobre os cultos e santos locais são interessantíssimas
não sei se Mariana é praticante de algum sistema de magia ou se todos os detalhes vieram de uma pesquisa, não sou um grande conhecedor, mas apesar das liberdades criativas, vários detalhes me parecem bem embasados.
aliás, essa primeira parte do livro, recheada magia e crendices populares, sexualidade não normativa, me fizeram pensar em Neil Gaiman e Clive Barker (assim como uma outra parte do livro remete a Stephen King -autor pelo qual Mariana não esconde admiração- e suas crianças maravilhosamente escritas), mas tudo isso com uma voz própria sem igual
e violentamente sulamericana.
Cada parte do livro tem um protagonista diferente, sua voz própria. e eu amei a forma como ele foi estruturado. não é um livro pequeno, e nada na estória é gratuito.
Os personagens são interessantíssimos, muitíssimo reais em suas conversas sobre futebol, política, arte... tudo muito real, muito familiar
num momento o livro reviveu minhas memórias das férias de verão da infância, imagino que quase toda pessoa com esse livro em mãos sentirá o mesmo, apesar de famílias diferentes,
essas momentos são sempre muito parecidos, tardes quentes cheias de tédio numa casa que ficou fechada por boa parte do ano, os cheiros e uma leve melancolia por que seus amigos também viajaram com suas respectivas famílias, pais brigando, problemas com dinheiro, reformas e planos que nunca se concretizavam, ou ficam inacabados por anos e anos...
Durante a leitura, as vezes eu virava uma página e me deparava com um bloco de texto, sem parágrafo, sem travessões, os diálogos socados ali no meio; e eu quase conseguia visualizar a autora no momento em que escrevia, aquela um enxurrada febril, quase que puramente fluxo de consciência; não parece algo que foi trabalhado, não foi algo talhado, é puro, algo que se derramou em forma de prosa, puro coração (e tripas)
e todo esse talento também cria cenas assustadoras
imagine ser um médium num momento onde terrorismo estatal matou mais de 30 mil pessoas, e torturou de forma indizível outras milhares, imagine a energia disso, do luto e agonia dAs Mães da Praça de Maio, os fantasmas perdidos pelas cidades... esse é o cenário. um livro sobre corrupção da sociedade e do espírito.
outro momento onde a pena sinistra de Mariana brilha é em mais um clássico de nossas infâncias, aquele momento em que assistimos algo horrível na tv e simplesmente não conseguimos mais esquecer, toda noite quando deitamos para dormir, aquela imagem volta para nos assombrar
(e aqui estou eu, com mais de 30 anos e vez outro penso nas imagens que Mariana descreveu, aquela caso horrível e macabro televisionado por dias, como uma novela do inferno).
Também identifiquei no livro temas como a predisposição masculina para a violência, ocasionada pela dificuldade de se comunicar e lidar com sentimentos.
Nossa parte de noite é recheado momentos desconcertantes e escabrosos
mas também um livro poético, profundamente triste, sobre chagas que seguem famílias e encobrem cidades, países
reafirmando que a américa do sul tem mais do que o suficiente para encher livros e mais livros com estórias de terror e mais do que isso, que nossas
assombrações são muito mais desafortunadas e insidiosas.
ps: CONTÉM SPOILER!!!
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foi ótimo ser surpreendido e reencontrar Adela (ou uma outra versão de Adela), personagem de um dos meus contos favoritos de "As Coisas que Perdemos no Fogo"