Cathy
01/01/2022Provoca sentimento de preenchimento e compreensão no leitor de uma realidade que ele ainda não viveu, mas tem conhecimentoLeitura extremamente recomendável e necessária.
Desde há muito já estava desejando ler algo que abordasse a peregrinação que os refugiados enfrentam. São pessoas similares a nós, com vidas e rotinas que muito se assemelham a nossa, com a diferença que vivem ou viveram em países que estão se desintegrando pela guerra e pelo terrorismo. “E por um tempo, naquelas noites, com os doces de damasco e o perfume do jasmim noturno, Firas em seu computador e Aya sentada ao nosso lado com Sami nos braços, enquanto ele mascava seu cabelo, a risada de Afra e Dahab chegando até nós vinda lá da cozinha, naquelas noites nós ainda éramos felizes. A vida estava em próxima do normal para que esquecêssemos nossas dúvidas, ou, pelo menos, para mantê-las fechadas em algum lugar nos recessos sombrios das nossas mentes, enquanto fazíamos planos para o futuro”. É uma realidade não tão distante de nós, brasileiros, pois também albergamos em nossa nação os haitianos, venezuelanos e outras nacionalidades órfãs de sua própria nacionalidade. “Agora, Alepo é como um cadáver de um ente amado, não tem vida, nem alma, está cheia de sangue podre.... Casas de verdade desmoronavam, desintegravam-se”.
Não se trata apenas de deixar o país em que vivem. Trazem em sua alma, indelevelmente marcadas, as cicatrizes emocionais e físicas de todo o tipo de violência. “Às vezes acho que se continuar andando, encontrarei alguma luz, mas sei que posso andar até o outro lado do mundo e ainda haverá escuridão. Não é como a escuridão da noite que também tem luz branca das estrelas, da lua. Esta escuridão está dentro de mim, e não tem nada a ver com o mundo exterior”.
Entender a realidade do outro, talvez possa nos preparar para um terrível futuro que nos avizinha e não se mostra de todo impossível. “Seu rosto traz uma expressão que reconheço de anos atrás, e faz minha tristeza parecer algo palpável, como uma pulsação, mas também me deixa com medo, medo do destino e do acaso, do sofrimento e do dano, da aleatoriedade da dor, de como a vida pode tirar tudo de você de repente”.
A história apesar de ser fictícia traduz o que deveras ocorreu na vida de muito, quiçá, de todos os refugiados. A narrativa é belíssima, não obstante ser dolorida de ler em alguns trechos. A poesia por trás de cada cenário, de cada construção fraseológica, nos dá vontade de marcar o livro inteiro. Há uma dança entre o que o protagonista e sua esposa enfrentam no presente e as memórias que determinado acontecido eclodem na mente do primeiro. Tais memórias vão construindo, sorrateiramente, a personalidade do protagonista e promovem uma maior compreensão de suas ações, suas escolhas, seus temores.
A relação entre ele, protagonista e narrador, e sua esposa é de uma riqueza sem tamanho. “Mas quando ficava triste, meu mundo escurecia. Eu não tinha o fazer quanto a isso. Ela era mais forte do que eu... A alma de Afra era tão vasta quanto os campos, o deserto, o céu, o mar e o rio que ela pintava, e igualmente misteriosa. Sempre havia mais para saber, entender, e por mais que eu soubesse, não era o suficiente, eu queria mais. Mas na Síria existe um ditado: ‘Dentro de quem você conhece, existe alguém que você não conhece’... Ela ria como se jamais fosse morrer”. “Afasto-me para poder olhar para ela; tristeza, lembranças, amor e perda afloram dos seus olhos. Beijo suas lágrimas, sinto o gosto delas, engulo-as. Assimilo tudo o que ela possa ver”.
Em determinados pontos específicos da narrativa, o leitor desatento pode ser perder nos devaneios do narrador, mas é algo muito sutil e contornável. “Às vezes, criamos tais ilusões poderosas, para não nos perdermos nas trevas”.
A relação do protagonista com as abelhas (ele é apicultor) é algo que permeia toda a narrativa e cria excelentes metáforas. “ A abelha dorme em um dos dentes-de-leão. Acaricio o pelo, bem de leve, para não perturbá-la. Estou surpreso que tenha sobrevivido neste jardinzinho que transformou em um lar. Observo-a descansando entre as flores, tendo ao lado seu pires de água doce; ela aprendeu a viver sem as asas”. Ele, assim como a abelha, por fim tinha a esperança de viver noutras terras, mesmo tendo perdido suas asas.
Incrível também como inúmeras relações são construídas ao longo do penoso caminho que o casal deixa sua terra natal em busca de proteção e vida. “...a força misteriosa que leva duas vidas a cruzar caminhos”.