Fabio.Nunes 11/01/2024
Surpreendente
A megera domada (texto adaptado) - William Shakespeare
Editora: Principis, 2021.
Livro da minha meta de janeiro, escolhido aleatoriamente pelo meu primogênito, aniversariante do mês.
Li esta obra em companhia de Elisabete Sanches, com quem pude trocar ideias e enriquecer minha experiência.
Vamos à obra.
Primeiro de tudo: este livro a gente consegue ler num dia; ótimo para férias (fica a dica).
É uma comédia de costumes, publicada - pasme! - em 1594 e que, portanto, conversa com uma época muitíssimo diferente da nossa. Portanto, aviso aos navegantes: cuidado com o anacronismo; não leve sua mentalidade dos dias atuais para julgar uma obra de costumes do passado - você pode perder muito em experiência literária. Vi muitas resenhas sobre esse livro que reclamavam que era machista, que objetificava a mulher; mas eu digo o contrário: Shakespeare usou ironicamente a realidade da época para ser uma espécie de proto-feminista.
Basicamente, essa é uma história, dentro de uma história, dentro de outra história.
RESUMO DA OBRA
Começamos com Sly, um beberrão endividado que discute com a dona da taberna e acaba por cair desacordado na rua, de tão alcoolizado. Passando por ali, um entediado nobre e seu séquito encontram uma maneira de se divertirem às custas de Sly: montam uma farsa para convencê-lo de que é um nobre: trocam suas vestimentas e o levam ao castelo, onde todos fingem servi-lo como senhor e o convencem de que suas memórias não passam de um delírio sob o qual Sly se viu subjugado. Neste castelo há um grupo de teatro contratado para encenar uma peça ? A megera domada ? e assim a segunda e principal história começa.
Nela vemos duas irmãs, Catarina e Bianca, filhas do senhor Batista. A primeira, mais velha, irascível, dona de uma personalidade forte e uma língua solta, incapaz de atrair pretendentes para um casamento. A segunda, mais nova, meiga, um modelo de mulher da época, cortejada por muitos que queriam sua mão em casamento.
Batista, entretanto, avisou a todos que Bianca só se casaria se Catarina (a megera) também se casasse, fazendo com que os pretendentes da caçula buscassem todos os meios para achar alguém disposto a tal.
Eis que entra em cena Petrucchio, um brutamontes, símbolo da força, masculinidade e ignorância; que aceita se casar com Catarina sabendo que o dote de Batista o faria ficar ainda mais rico. Vai em frente nesta tarefa, consciente que terá de ?domar? a megera.
Entrementes, há Lucêncio, filho de um rico mercador de Pisa, que se apaixona por Bianca e fará de tudo para obter sua mão em casamento. Para tanto, faz seu servo (Trânio) travestir-se de Lucêncio para se apresentar a Batista como um pretendente à mão da filha. Enquanto isso, fingia ser um mero professor, para poder ficar próximo de Bianca e conquistar diretamente seu amor.
A narrativa flui depressa, com Catarina se casando (não necessariamente à força) com Petrucchio e sofrendo por parte deste várias humilhações como forma de subjugação à autoridade masculina. Dentre elas, privação de sono, privação de alimento, e o que se pode chamar de primeiro ?gaslighting? da literatura. Literalmente a doma de um animal.
É nesse momento que o livro nos apresenta a grande disputa de poder: Catarina entende sua realidade e, amadurecida, passa a fingir obedecer ao marido, suprindo sua necessidade masculina infantil de poder, para com isso dominá-lo. Ou seja, ela finge que obedece e Petrucchio acha que manda.
No fim, sem dar spoilers, Catarina passa a se divertir nesse fingimento, mostrando de forma explícita a crítica de Shakespeare à ilusão do poder.
No epílogo, vemos um terceiro narrador (provavelmente o próprio Shakespeare) conversando com o leitor e discorrendo sobre o desfecho da história de Sly ? eis aí a terceira camada da história.
OBSERVAÇÕES E SENTIMENTOS
- Como disse, o processo de leitura é fluido. Era pra ser uma leitura conjunta, dividida em vários dias, mas acabei por atropelar o tempo e ler o livro todo em 2 dias.
- Pode não parecer pelo que falei acima, mas essa peça é uma comédia. Eu ri em vários momentos, e isso transformou minha leitura numa experiência muito agradável.
- Numa época vinculada de forma mais literal aos textos bíblicos (Séc. XVI), a mulher era apenas uma propriedade (em dúvida se usei o tempo verbal é o mais adequado). Propriedade dos homens! Primeiramente do pai, que pagava um dote para se livrar dela, e depois do marido, a quem deveria se submeter incondicionalmente. Catarina é exatamente o oposto dessa regra! Inicialmente apenas uma menina mimada e orgulhosa, se torna posteriormente um símbolo de poder, ao utilizar das ferramentas disponíveis à época para vencer esse processo de humilhação e objetificação. Finge-se de frágil, entendendo a ilusão do poder. Enquanto isso, sua irmã Bianca, o símbolo do feminino naquele momento, é a verdadeira mulher desempoderada e frágil, pois que apenas um objeto do mundo masculino. Entendo que essa postura de Catarina num primeiro momento incomode, mas se pergunte se seu incômodo não é fruto de uma interpretação anacrônica.
- Vamos falar agora de uma oposição muito clara nessa obra: o falso x o verdadeiro. Sly é um pobre bêbado (verdade) que é convencido de que é um nobre (falso) para assistir a uma peça em que a verdade e a falsidade vivem em conflito. Nesta peça, Catarina se finge de domada (falso) mas continua a ser fiel a si mesma (verdade), enfrentando do seu jeito um mundo fortemente patriarcal. Em adendo, temos Lucêncio que se apaixona por Bianca (verdade) mas que prefere estar diretamente em contato com seu objeto de desejo, de efetivamente conquistá-lo (verdade) do que realizar todos os trâmites burocráticos de transferência de propriedade com o pai dela (falso), incumbindo seu servo Trâmio de se passar por Lucêncio (falso). Além disso, o poder é o tempo todo apresentado como uma farsa ao longo da obra, seja na pele de Sly ou na de Petrucchio; seria uma crítica à nobreza?
Enfim, minha experiência com essa obra foi surpreendente. Ao longo da leitura não imaginei que fosse gostar tanto.
Agora quero conhecer mais da obra de Shakespeare.