Janaina 04/03/2022
Mia sendo Mia
Conheci Mia Couto ano passado, com seu livro Terra Sonâmbula, cuja leitura me arrebatou, me deixando encantada e reflexiva por muito tempo e, fazendo nascer uma paixão que me levou a outras obras suas.
Além de um conto (inspirado numa música de Chico Buarque), este é o terceiro livro que leio dele, e, a cada leitura, Mia vai assegurando seu lugar na minha lista de escritores preferidos, por conta da sua poesia, da sua linguagem extremamente metafórica e carregada de neologismos, pela riqueza estética e histórica e pela oportunidade de aproximação com a cultura africana.
Percebi traços de semelhança entre os 3 livros (este, Terra Sonâmbula e Mapeador de Ausências) que li dele: em todos há uma viagem, uma busca por ancestralidade e pertencimento e uma forte carga de ausências.
Este começa com uma viagem de Marianinho à Ilha de Luar do Chão, junto ao tio Abstinêncio, para acompanhar o enterro do avô, depois de passados anos da sua partida da cidade natal. Os toques de realismo anímico já se insinuam com o aparecimento da personagem Miserinha, na mesma embarcação, e vão tomando conta da narrativa à medida em que uma inusitada comunicação vai se estabelecendo entre avô e neto, dando início a uma atmosfera de misticismo e suspense que torna a leitura extremamente envolvente e instigante, e acaba por revelar fatos surpreendentes dignos de um bom thriller.
Num rico jogo metafórico que, muitas vezes, nos obriga a parar para sentir, digerir e viajar nas possibilidades interpretativas, nos deparamos com personagens fortes e com nomes extremamente simbólicos, como Abstinêncio, Ultímio, Mariavilhosa, Admirança, Fulano, que nos tocam de maneira diferente, ao mesmo tempo em que percebemos a força viva de elementos como o rio e a terra, que demarcam seu espaço, sua importância e seu significado, nos obrigando a ativar ainda mais a sensibilidade e a incluir no exercício da leitura a atividade conjunta de todos os nossos sentidos.
Um livro sobre morte e vida (pensados fora da caixinha), sobre conflitos familiares, sobre ancestralidade e pertencimento, sobre o efêmero e o eterno, sobre movimento e estabilidade, sobre o que precisa ir e o que deve ficar.
Uma leitura linda, fluida, poética, que só poderia ter sido produzida por Mia Couto.