Livros da Julie 12/09/2021Até onde se pode ir tomado pela dor e pela culpa?-----
"Nenhuma perda chega emancipada do vazio que aflige os que ficam entre os vivos."
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"Ficar olhando o mar assim faz a gente perceber o quanto somos frágeis diante de uma força tão grande."
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"Fazer o sinal da cruz e conversar sozinho como se falasse com Deus era mania dos desesperados que não aceitavam o óbito como ponto-final de uma história de vida."
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"Rapazes embriagados de libido só mostravam quem eles eram de fato ao serem rejeitados, como se recusar suas promessas de alguns minutos de prazer fosse uma afronta moral."
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"Na hora de cativar a presa, um lobo deixava o uivo de lado para falar mentiras com voz de veludo. Fantasiava-se na pele de um cordeiro com a intenção de se aproximar o suficiente para em seguida arreganhar os caninos e dar o bote."
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"Sempre haverá um culpado pela coragem de degradar o templo que hospeda a própria alma. Nada do que se comete a si próprio é feito sem a influência de outro."
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"Tentar salvar uma alma que ambiciona a condenação é a mesma coisa que regar uma pedra e esperar que dela nasça algum fruto."
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"E onde tá escrito que a vingança vem sem autodestruição?"
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"Fazer nada muitas vezes é tudo que precisa ser feito para destinar a alma de alguém ao Inferno."
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Palavras interrompidas foi o livro do mês de julho da leitura coletiva da Faro Editorial promovida pelo @clubeliterarioferavellar (#ClubeLiterarioFerAvellar).
Dor, mágoa, consternação: todos os piores sentimentos se apossam de Carlos quando ele descobre que sua filha está morta. Chamado a identificar o corpo, contudo, se enche de espanto, pois mal a reconhece. Com uma aparência bem diferente, aquela jovem em nada lembrava a doce menina que Fernanda era.
Enquanto tenta traçar os últimos passos de sua filha para entender o ocorrido, Carlos faz descobertas estarrecedoras, ajudado pela figura mais improvável. Devastado pela amargura e pela cólera, ele não se deixará deter até desvendar o que causou a morte prematura de Fernanda.
Em Palavras Interrompidas, acompanhamos a saga de Carlos em busca de respostas, à medida que ele vivencia o luto em todas as suas fases. A clássica moral da história sobre o tema da vingança aparece repaginada, contrastando a visão romantizada com a realista. O certo ou errado deixa de ser ditado por uma ética superior e passa a ser consequência direta dos mais sombrios instintos. Não há redenção, alívio ou remédio.
A ambientação da história é significativa e confere força narrativa. A linguagem mais elaborada, por vezes rebuscada, pode parecer deslocada a princípio, porém reforça a sensação de surrealidade que envolve toda a situação. A escolha poética de palavras destaca a beleza da nostalgia suscitada pelas boas lembranças que o protagonista tinha da filha e realça a terrível jornada de comiseração em que ele mergulhou.
Embora os sentimentos de tristeza e culpa permeiem e oprimam a história, o suspense gerado pela investigação ameniza o seu tom lúgubre. As revelações, as reviravoltas e as alegorias utilizadas pelo autor nos mantêm atentos e estupefatos, enquanto consideramos cuidadosamente cada implicação e nos questionamos: será que faríamos o mesmo? Será que o inferno é aqui?
Uma profunda reflexão, que engloba também o viés religioso, parece ser o objetivo final após um percurso pelos recantos mais pesados e sinistros do nosso ser. É impossível não se conectar em algum nível com as emoções que carregam Carlos como um turbilhão, nem se compadecer do seu assustador estado mental, muito bem ilustrado por meio das imagens impactantes que se somam ao texto, vislumbres de cenas que enriquecem ainda mais o drama. Aliás, o projeto gráfico é excepcional e eleva a obra a outro patamar.
À parte os possíveis gatilhos existentes, a história é um grande alerta sobre os riscos para a saúde mental de pessoas enlutadas. O remorso pode arrastar os que ficaram para o fundo do poço, conscientemente ou não. Uma pessoa desesperada é presa fácil de suas próprias aflições e pode sucumbir ao seu desvario interior.
O amor paterno foi o escolhido neste livro para demonstrar a força que o silêncio pode exercer nessas circunstâncias sobre uma relação que deveria ser inabalável. Incondicional ou não, o afeto requer atenção; as pessoas precisam ter a certeza de que alguém se importa com elas. Se não abraçamos a verdadeira comunicação com o próximo, costumamos falhar miseravelmente em aceitar que a vida possui seus meandros e compreender que devemos forçosamente segui-los.
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