julia 30/04/20203,5
Eu tenho muitas opiniões sobre esse livro.
Em primeiro lugar, acho que é importante destacar: esse é um livro muito colonialista. Foi escrito por uma mulher branca inglesa na década de 1920 e se passa na África do Sul. A forma como o país é retratado é a partir de uma perspectiva colonial: um lugar exótico de belezas naturais, com nativos sorridentes e ansiosos para agradar, com conflitos políticos em que o povo local tem zero agência. É plano de fundo para o mistério da protagonista branca. Não sei se é possível dizer que há personagens negros nessa história, porque os sul-africanos estão sempre relegados ao plano de fundo. É como se eles fizessem parte do cenário.
Preciso dizer que isso me incomodou durante a leitura, apesar de eu ter começado o livro sabendo que isso ia acontecer. Eu já sabia onde a história se passava e eu não tinha a menor expectativa de que a Agatha Christie fosse ser um ícone antirracista. Então é uma situação meio complicada, porque isso afeta a minha leitura, mas ao mesmo tempo não a ponto de eu não conseguir reconhecer os pontos positivos do livro.
Por exemplo, a representação feminina nessa história é bastante interessante. Eu reparei que muita gente achou a Anna chata, mas eu achei ela meio ótima? Quer dizer, fora o colonialismo e tal. Ela tem uma ingenuidade que vai se desconstruindo aos poucos. Começa com ela saindo dessa vida pacata de cidade inglesa do interior, em que ela se dedicava aos cuidados do pai. Ao se tornar órfã, ela percebe que tem uma vida inteira pela frente, cheia de possibilidades por não ter os laços que na época prendiam as moças (basicamente, homens). Ela inclusive tem a opção de se casar com um médico e constituir família, ou trabalhar para a família que a acolheu em Londres, mas ela tem essa determinação meio infantil de se aventurar por aí. Eu me encantei pela cena dela se pintando toda e fazendo pose de "Anna, a aventureira", para, em seguida, afirmar: "As jovens são muito tolas".
Esse livro é um mistério, um romance policial, uma história de espionagem, mas é também sobre essa menina se jogando de cabeça numa aventura e se transformando ao longo dela. Eu ando estudando um pouco sobre a perspectiva feminina (female gaze, em inglês) e eu sinto que essa história tem muito disso. É uma história profundamente feminina, em que a intuição conta muito, a sensibilidade não exclui a força, ela consegue alcançar todos os seus desejos e até pode escolher entre dois galãs no fim do livro.
O romance é uma parte deliciosa dessa narrativa. Tem um quê meio agressivo que pode incomodar algumas leitoras, mas que eu particularmente gostei, além de ser bastante condizente com a época. As provocações entre a Anna e o Harry são bastante engraçadinhas, a tensão sexual é palpável. Essa história dele tentar se afastar, ela fingir que vai aceitar, depois ele mudar de ideia ao ver ela enfrentando o perigo ao seu lado, e ela dar risada falando que nunca cogitou realmente ir embora. É uma perspectiva tão feminina, sabe! Essa agência da Anna na história, as vontades do Harry serem exatamente as mesmas que as dela. Ele tenta ser machão, ditar as regras, e ela debocha sutilmente. Assim como a reviravolta aos quarenta e cinco do segundo tempo, do Harry na verdade não ser Harry e sim um herdeiro de uma grande fortuna. A princípio eu achei meio desnecessária, mas depois eu entendi que tinha aquele apelo romântico de ver um homem abrindo mão de dinheiro, para viver isolado do mundo com sua amada em uma selva perigosa e cheia de aventuras. É uma fantasia que tem seu apelo (apesar de, definitivamente, não ser a minha).
Outra coisa muito feminina dessa história é essa relação da Anna com o Coronel. Ela o perdoa, porque sente afeto por ele, simples assim. Acaba refletindo também uma visão um tanto machista de isentar o homem das responsabilidades de seus atos, especialmente quando ela diz que a Nadina merecia morrer.
Os homens são capazes de fazer todas as coisas condenáveis para enriquecerem. Mas as mulheres não devem fingir estarem apaixonadas, por motivos escusos, quando não estão.
Ela praticamente diz que tudo bem o moço ter tentado jogar ela no mar, mas a Nadina ter fingido se apaixonar já é passar dos limites. Ao mesmo tempo, tem um quê feminino nisso (fora a rivalidade), porque coloca a sentimentabilidade acima de tudo. Especialmente, porque o Harry não perdoa o Coronel, porque ele parte da racionalidade (tentou matar a minha esposa = não merece perdão). Enfim, não que eu esteja defendendo essas posturas, nem falando que perdoar homens que tentaram te matar é inerente à noção de feminilidade, mas é só um exemplo da narrativa se guiando a partir das emoções, dos sentimentos da protagonista. Dos quais eu discordo, só pra deixar bem claro. De maneira geral, não perdoem homens que tentarem te matar, sim?
Uau, saí por uma tangente aqui.
O mistério, que deveria ser a parte mais importante do livro, foi um pouco... decepcionante, para falar bem a verdade. Gostei que a autora usou a perspectiva do culpado ao longo de todo o livro. No começo, eu achava que não poderia ser ele, porque a Anna fala no comecinho que ele fez questão que ela incluísse trechos do diário dele na história. Ao mesmo tempo, foi chegando no final e as opções foram diminuindo, e eu só lembrava dele falando sobre como o diário dele era parcial, que não registrava os fatos e sim o que ele queria que as pessoas soubessem. No geral, é uma boa sacada e foi bem construído, mas não sei, eu gostava mais da minha teoria de que o Coronel na verdade era a Sra. Blair.
A narrativa me incomodou em alguns momentos, quando poderia ter se aprofundado mais no universo interior da Anna. Tipo quando ela admite estar apaixonada: eu já imaginava que ia rolar esse romance desde a cena deles no quarto, mas achei que podia ter tido algum intermédio entre a tensão sexual e ela declarar que está perdidamente apaixonada e disposta a abrir mão de tudo em nome desse amor. Especialmente, porque esses sentimentos aparecem pela primeira vez em um diálogo, o que eu achei muito estranho para uma história narrada em primeira pessoa. A explicação final do Coronel sobre os eventos do navio também foram meio ruins: a história da facada no Harry ficou mal explicada, assim como a disputa pelo quarto 17 (como assim o Minks disputou o quarto também, na cara dura?) e a explicação do erro do número da cabine ser tipo "a telegrafista se confundiu" (que lixo). O primeiro capítulo ficou totalmente perdido quando chega a explicação de que a narrativa teria sido escrita pela Anna no meio da floresta. Ao mesmo tempo, tiveram partes do texto que eu achei genuinamente engraçada.
Não gostei da tradução da minha edição. Mas eu também sou chata com traduções, então tem isso.
No geral, é um bom livro. Problemático, sim. Me deu um ligeiro ranço em alguns momentos e eu sei que se tivesse sido escrito nesse século, eu não seria tão tolerante. Dentro dessas limitações, eu gostei bastante das personagens (e é só por isso que ele levou 0,5 a mais). Achei interessante uma história de aventura ser contada de maneira tão feminina, apesar de dolorosamente branca. Leia por sua própia conta e risco.