spoiler visualizarLuigi - Acrópole Revisitada 20/07/2023
Os piores abismos se escondem em meio a planícies.
Os piores abismos se escondem em meio a planícies.
E veem metamorfoseados, fantasiados, em aparentes normalidades. Claudia, nove anos, filha única de um casal com vinte anos de diferença, percebe, mesmo com a tenra idade, os tentáculos invisíveis que seduzem e puxam as pessoas e as relações para despenhadeiros todos os dias. Entende que quase nunca é possível ficar totalmente a salvo desse canto de sereia.
O romance Os abismos, da colombiana Pilar Quintana, usa metáforas e literalidades para falar desses abismos que circundam a vida da pequena Claudia. É pelo olhar dela que temos acesso à história e muitas vezes o leitor compreende mais rapidamente o que está acontecendo do que a própria narradora, que ainda tateia o mundo que a cerca e se esforça para entender a lógica das relações e decisões dos adultos.
Mas não se engane, o que a personagem principal do livro, publicado pela Intrínseca no Brasil em 2022, parece ter de ingênua tem também de sensitiva e observadora. Uma das primeiras coisas que nota é a solidão da mãe, que se refugia em seu duplex, de pé direito alto, cheio de plantas – que chama de “selva”. Viciada em ler revistas de mulheres famosas, e histórias de mulheres que tiveram mortes no mínimo estranhas, ela alterna entre a sua “selva” e seu quarto, de onde pouco sai.
Uma das primeiras coisas que Claudia percebe é o distanciamento da mãe. Fica bastante claro para o leitor que a mãe da garota, que também se chama Claudia, é uma pessoa que não queria ser mãe, mas para quem a maternidade acabou acontecendo. Ela não consegue sequer chamar a filha pelo nome, usando sempre o termo “xará”.
Enquanto a mãe vive no seu mundinho, em uma obsessão pelo tema do suicídio, o pai, que tem idade para ser avô da menina, passa seus dias no supermercado do qual é dono. A relação dos seus progenitores no início da narrativa é morna, sem grandes anormalidades. Entretanto, não demora muito para que a relação se inflame tendo a menina como espectadora de discussões e acusações que envolvem também outros integrantes da família.
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A narrativa, que se passa em Cáli na Colômbia, tem uma única incursão fora da cidade. Depois de Claudia mãe muito insistir, o pai cede a seus pedidos e a família vai passar as férias em uma estância (quinta) nas montanhas perto da cidade onde moram. Ali a metáfora, e a literalidade, dos abismos ganham novos e mais profundos contornos. Nunca se está a salvo dos chamados dos precipícios.
Com uma escrita saborosa, Pilar Quintana constrói uma história sobre relações familiares, casamentos impostos, aventuras extraconjugais, depressão e maternidade. A protagonista, apesar de não saber necessariamente nomear todas as coisas que se passam em torno dela, consegue, a seu modo, entender o que está acontecendo e tenta reagir para que as crateras não se aprofundem mais.
As histórias da mãe de Claudia, de uma amiga de sua mãe que se suicida, bem como a história de uma mulher que desapareceu repentinamente muitos anos antes, parecem estar conectadas. Mulheres que desejavam que as próprias vidas tivessem outros contornos, que acreditam que suas decisões, ou imposições sociais, as trancafiaram em um universo que está anos-luz distante daquilo que desejaram e sonharam para elas próprias.
Embora já tivessem conseguidos inúmeros avanços históricos, as mulheres dos anos 1980, época em que se passa a história, ainda estavam presas a determinados modelos de vida, sobretudo em uma classe média que, apesar de se dizer livre, reproduz as mesmas estruturas opressoras em que as mulheres não podem estudar – embora fosse esse o anseio de Claudia mãe –, devem ser mães e precisam ficar em casa vivendo um tédio doméstico.
A aventura parece ser a única solução possível para se sentir viva. Em alguns casos pode ser uma aventura extraconjugal. Em outros, desaparecer sem deixar vestígios. E as proles indesejadas precisam mendigar o amor de uma mãe que não se interessa por elas, enquanto os homens/pais/maridos, que são até gentis e atenciosos, continuam irredutíveis em alguns aspectos e não se importam com a monotonia da vida das cônjuges, cheias de sonhos não realizados.
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Depois do sucesso de A cachorra, em que o tema da maternidade também é trabalhado, Pilar Quintana constrói uma obra ainda melhor do que a anterior, agora do ponto de vista de uma criança que passa por aquele momento da vida em que percebemos que nossos pais não são os heróis que imaginávamos, que a vida adulta pode ser cheia de problemas, amarguras e sonhos não realizados.
Ela vai ter que descobrir como se proteger, e proteger aqueles que ama, dos infinitos despenhadeiros que se escondem em meio a terrenos aparentemente planos. É como crescer!