Toni 18/04/2024
Leituras de 2023 | Cortesia da autora
Caminhando com os mortos [2023]
Micheliny Verunschk (PE, 1972)
Companhia das Letras, 2013, 144 p.
O tempo dos vencedores é inexorável, fundamentado numa noção ilusória de progresso, e se orienta para o futuro com o olhar fixo na manutenção dos privilégios e interesses de grupos hegemônicos do presente. No contexto da ficção de Micheliny Verunschk, a quebra desse paradigma se dá através de uma poética das ausências e das emergências, de resgate do tempo dos vencidos (em seu fluxo cíclico, pluritemporal e questionador dos registros) que engole derrotas, regurgita traumas e se reinventa através da fabulação. Em sua prosa, o tempo é raramente tratado de forma linear, tanto no sentido do embaralhamento dos presentes diegéticos quanto no da coexistência de temporalidades que se reconhecem e se retroalimentam. Assim, o traçado distintivo entre passado e presente não é absoluto e o tempo, via de regra, manifesta uma dimensão de performatividade que desestabiliza a distância entre memória e vivência, experiência e relato, verdade e elaboração.
Em “Caminhando com os mortos”, Verunschk segue seu projeto de explorar as inúmeras violências que compõem o quadro social brasileiro. Neste romance, a história de um feminicídio provocado pelo fanatismo religioso se desdobra em depoimentos, memórias e relatórios policiais que traçam o risco (aqui em seu duplo sentido) “trajetório” do crescimento do neopentecostalismo e da intolerância contra tudo aquilo que é dissidente, questionador ou não normativo. A canalização desse ódio na figura da mulher possuída — a bruxa, presente tb na “Trilogia infernal” onde encontramos referência ao caso real de Fabiana Maria de Jesus, morta aos 33 anos em Guarujá após ser confundida com uma sequestradora de crianças acusada de rituais macabros — adquire desta vez lugar central na narrativa. Conectando a história de Celeste (a vítima que abre o romance) àquela da perita que encerra a narrativa misturando-se à paisagem (como a jurema da capa), “Caminhando com os mortos” desenterra as raízes de um ódio milenar, ao mesmo tempo que nos lembra, em resposta, que “Se Deus é grande, o mato é maior.”