spoiler visualizarchuwanning 07/02/2024
Uma carta de s* em forma de livro
às vezes, e digo que isso acontece raramente, um autor com o brilhantismo de um louco e a percepção de um suicida escreve um livro, e esse livro carrega consigo uma linhagem universal e tão clara que, mesmo através dos tempos, continua compreensível e autêntico. o que Osamu Dazai fez com o ODDUH, ouso dizer, foi incorporar a tragédia da mente da melhor forma que somente pouquíssimos autores se arriscam a fazer. e é assim, meus amigos, que nasce um clássico.
trecho: durante o curso de minha vida eu desejei, por inúmeras vezes, que eu morresse de forma violenta.
trecho: eu sempre temia de medo diante dos seres humanos.
na história, seguimos Yozo nos três períodos mais críticos de sua vida: infância, juventude e vida adulta. o tempo aqui é uma ilusão ácida e chocante, você nunca tem certeza, pela quantidade de coisas que ele narra, se já se passaram dois ou trinta anos, e chega a pensar que esse homem ao fim do livro estará nos seus setenta, oitenta. mas, não. ele termina o livro com rasos vinte e sete anos, e uma bagagem emocional de três vidas inteiras. dizer que, entre aspas, o protagonista não aceitou ajuda, fecha aspas, como vi numa resenha aqui, é não entender o básico do básico do que o livro traz: a época, mas não somente isso, também o cenário japonês, profundamente influenciado por uma perspectiva assistencialista estadunidense, que enxergava a doença mental como um problema do indivíduo, uma falha de seu caráter, e colocava sobre ele um estigma de divergente.
se analisar com cuidado, pode-se perceber que Yozo não era um machista misógino pela simples aversão às mulheres - não, é bem mais complexo do que isso. é que ele nunca entendeu o ser humano, e as mulheres eram complexas, e pela pressão da sociedade ele sentia que devia tocar nelas, se envolver com elas, e por isso criava por elas uma tremenda aflição, por essa imposição de que deveria, afinal, ter uma mulher, ainda que não a amasse, não fosse amado, ou não a merecesse. vê-se que ele chega a encontrar duas por quem tem sentimentos sinceros: a viúva com sua filhinha e a esposa do bandido. contudo, uma vivia com a mesma tristeza incompreensível e profunda dele, e juntos eram destrutivos a ponto de causar o incidente que o levou à prisão, e a outra era boa demais, gentil demais, e ele não sentia que merecia gentileza, apenas o esporro, por não conseguir sentir as coisas como as outras pessoas, e ser estranhamente apático aos sentimentos alheios.
trecho: os fracos temem a própria felicidade. eles podem se machucar com algodão.
trecho: o amor voa pela janela quando a pobreza entra pela porta.
não apenas o cenário japonês, a tensão política complexa, a pobreza, a influência norte-americana, mas também essa pressão de seguir uma linha reta na vida, da qual, se você se desvia, é um fracassado, levam Yozo direto para o fundo do poço. e quando ele chega lá, tem muito para cavar ainda. na verdade, acredito que ele nunca parou de cavar.
saber que o incidente com Tsuneko na verdade foi baseado num evento real quando o próprio Dazai se jogou ao mar com uma mulher com quem tinha um relacionamento é assustador. ele pegou toda a própria doença e despejou seus terrores nesse personagem ímpar, complexo e incorrigível, a fim de marcar o mundo, desabafar nem que fosse uma única vez, sobre sua dor emocional. Dazai cometeu suicídio antes dos quarenta anos, assim como Yozo ele era muito jovem, muito atormentado, e jamais saberemos o que o levou a isso - ou saberemos, porque o vazio existencial de Yozo é claro, e, se for mesmo um reflexo do próprio Dazai deixando uma carta de suicídio em forma de livro, é uma coisa profundamente triste.
trecho: Você parece alguém que teve uma infância infeliz. Você é tão sensível. Que pena de você.
alguns outros pontos que tornam esse livro genial: a complexa, tóxica, porém muuuuuito verídica amizade de Yozo com Horiki - sério, todo mundo já teve um amigo como o Horiki e isso é um lamentável fato; o fato como ele projeta a própria má sorte e o próprio emocional ruim nas mulheres e outros, como na hora que diz, sobre uma mulher, que, abre aspas, sua obviamente nunca poderia ser transformada num romance, fecha aspas, porque ele sabia que jamais poderia ter coisas assim, já que seu coração era rígido, seco, e sua mente era um inferno como ele mesmo descreve; a forma como fica claro que a aversão às mulheres é muito mais um ato imposto do que ódio; o jeito como milhares de jovens adultos podem se ver na forma como a vida adulta dele foi cheia do sentimento de estar demasiado só e incomodando todos ao redor. entre outros vários.
conclusão: os livros de hoje adoram finais felizes, fechadinhos e personagem redentores, e isso me aborrece. por receio de mergulhar na profundidade imunda do emocional humano, muitos autores contemporâneos não querem mais tocar nesses assuntos, como a crônica vontade de morrer, a repulsa ao próprio corpo e ao do outro, pensamentos intrusivos, falhas de caráter. geralmente isso é abordado como uma estética de militância vazia, que não se aprofunda na complexidade, permanece rasa porque pensam que os leitores têm preguiça de raciocinar, e não quererm, entre aspas, provocar gatilhos, tomar estrelas baixas nas avaliações, fecha aspas, por isso tentam agradar a todos ao invés de ser sinceros, e é aí que erram. felizmente, autores como a Clarisse, a Hilda, o Caio Fê de Abreu e tantos outros, assim como Dazai, estão aí para nos incentivarem a sermos ousados na escrita e, em especial, sermos mais sinceros.
por fim, deixo mais um trecho, e espero um dia ler esse livro físico, segurando e riscando todas as passagens lamentáveis e imundas onde me identifiquei com a apatia suicida do Yozo.
trecho: Eu senti como se o vaso de meu sofrimento agora estivesse vazio, como se nada pudesse me interessar agora. Eu havia perdido até mesmo a habilidade de sofrer.