Paulo Silas 18/09/2020Uma obra maravilhosa que faz jus ao acolhimento e sucesso que teve, com repercussão nacional e internacional. Primor da literatura brasileira, a peça de Ariano Suassuna faz contracenar algo que supera os personagens que a compõem. Para além daqueles tantos nomes característicos, mundanos e de um mundo outro, questões que dizem respeito ao agir humano, aos sentimentos que permeiam homens e mulheres, às vicissitudes tantas e diversas e até às grandes questões da humanidade, como é o caso do senso ou noção de justiça, aparecem de modo próprio ou característico como presentes nas falas entre as cenas e em todo o desenrolar da história. É um teatro que cativa o leitor/espectador do início ao fim, divertindo e ensinando no melhor estilo de Suassuna.
"Auto da Compadecida" traz uma empolgante história que gira em torno de João Grilo e Chicó. A dupla de amigos possui um traço em comum que ao mesmo tempos os difere ao considerar as razões dessa característica: são contadores de histórias. É justamente por conta disso que todos os desdobramentos da peça ocorrem, tendo início com a dupla visitando o padre para pedir que o cachorro da mulher do padeiro fosse benzido, pois estava muito doente e prestes a morrer. Como o pedido é considerado absurdo, João Grilo passa a se utilizar de várias artimanhas com invencionices para convencer os outros a fazer aquilo que entende ser necessário. A partir de então, os eventos que disso decorrem são vários, reunindo os personagens da peça numa série de situações peculiares que culminam na morte da maioria. A coisa, porém, não para por aí, pois a história prossegue num outro plano - onde todos serão julgados por suas ações na terra, cujas sentenças possíveis são o céu, o inferno ou o purgatório.
Como muito bem arremata Henrique Oscar no prefácio dessa edição da obra, "o leitor concluirá que é um programa da humanidade, com suas misérias, suas fraquezas, mas também suas razões de consolo e esperança, que "Auto da Compadecida" evoca". É aí que reside o mérito da obra e de seu autor. Inobstante todo o divertimento que a peça toda proporciona, o elemento dos julgamentos na última parte do livro pode ser apontado como o âmago de todo o brilhantismo da história. Com O Encourado (o Diabo) fazendo a acusação, Manuel (Nosso Senhor Jesus Cristo) como juiz e A Compadecida (Nossa Senhora) como defensora, o palco do julgamento questiona e faz refletir diversos pontos do agir humano. Uma obra digna que merece ser lida, relida e interpretada tantas e tantas vezes.