Emanuel.Müller 24/10/2022
Ótimo obra para começar na literatura brasileira
Se alguém, porventura, me pedisse uma recomendação de leitura para iniciar seus passos na literatura brasileira, ou até mesmo em peças teatrais, indicaria de coração esta obra que aqui resenho, o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna. Não indicaria pelo fato desta obra ser conhecida pelo filme ou pela minissérie, mas sim, porque ela é uma peça, cuja leitura flui e é muito acessível.
Se o leitor aqui, de minha resenha, conhece ou não o livro, não tem problema! Aos que conhecem, notarão que a obra tem sim semelhanças, mas diferenças especiais que só a peça pode oferecer. E aos que não conhecem, é uma ótima obra para começar.
Pode ser que haja alguém que já viu o filme e profira as seguintes palavras: “para que lerei esta pessoa, cujo enredo já enredo já conheço? Não tem graça ler algo que conheço da cabeça aos pés”. O pensamento hodierno sobre “spoilers”, na minha opinião, só é válido quando a obra é nossa, mas não vale para os clássicos. Explico: quantos de vocês conhecem o fato da Paixão de Cristo? Creio que a grande maioria, e aposto que vocês já viram inúmeras versões cinematográficas da Paixão do Senhor. Para quê se já conhecem a história? Isto se dá pelo fato de que todos nós desejamos conhecer a versão trabalhada nos filmes. O modo como se reproduz o fato da Paixão difere muito de um filme para outro, embora o fato seja o mesmo. Mas aqui comentei sobre a representação de um fato concreto, e o que dizer de um clássico literário como o Auto da Compadecida?
É verdade que o cineasta correspondeu de forma muito parecida com a obra literária, mas também tem as suas diferenças. Vejamos que na obra de Ariano, há a existência do Frade e do Sacristão, mas não há a existência da filha do Major, tal como no filme. Não vejo como problema, porque o cineasta quis por a sua impressão digital sobre o filme, mas para quem ler a peça teatral de Ariano, notará nuances engraçadas e reflexivas que não estão presentes no filme.
Um exemplo: compartilho aqui duas das falas iniciais do Palhaço, que é a própria representação do autor:
“Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo para exercício de moralidade.
[...] Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre e tem direito a certas intimidades” (SUASSUNA, 2014, p. 17.18).
O combate que Ariano Suassuna faz nesta peça é a hipocrisia no geral. O farisaísmo de uns (lembremo-nos de uma das falas de Nossa Senhor, que é a Compadecida, ‘como todo o fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado’ (SUASSUNA, 2014, p. 146)) e a traição dos próprios princípios morais, éticos e religiosos por certos interesses.
Não se trata de uma peça anticlerical, como alguns acusam, e o próprio Ariano Suassuna se defende da seguinte forma:
“Eu critiquei os padres e bispos maus. Eu sou católico de verdade. E em RESPEITO aos padres e bispos bons, eu critico aqueles que são maus”” (SUASSUNA, Ariano. apud. FIEL CATÓLICO. Sobre as críticas aos desmandos do clero. Disponível em Acesso em 23 out. 2022).
Torna-se ainda mais nítido e claro tal questão, quando vemos que o frade (personagem que não está presente no filme), humilhado várias vezes pelo prepotente bispo – que o chamava de “débil mental”, na verdade, era o homem mais santo dos personagens desta peça. Tanto é que foi o único que se dispôs a querer confessar os personagens antes deles morrerem, mas como Severino queria mata-los o mais rápido possível, o frade deu-lhes a absolvição geral, sob risco de morte dos confessados (cf. SUASSUNA, 2014, p. 97).
O frade não morre e é poupado por Severino. De acordo com a acusação de Encourado para cima do bispo, o Encourado, que é o próprio Satanás, afirma o seguinte:
“ENCOURADO: Arrogância e falta de humildade no desempenho de suas funções: esse bispo, falando com um pequeno, tinha um orgulho só comparável à subserviência que usava para tratar com os grandes. Isto sem se falar no fato de que vivia com um santo homem, tratando-o sempre com o maior desprezo.
BISPO: Como um santo homem, eu?
ENCOURADO: Sim, o frade.
BISPO: Só aquele imbecil mesmo pode ser chamado de santo homem!
ENCOURADO: O processo de santificação dele está encaminhando por aí. Ele acaba de pedir para ser missionário e vai ser martirizado. Pra mim isso não passa de uma tolice, mas aí para Manuel você está se desgraçando.
BISPO: Mas é possível que aquele frade...
MANUEL [Nosso Senhor Jesus Cristo]: É perfeitamente possível” (SUASSUNA, 2014, p. 131s).
Vejamos que este frade foi escolhido pelo bispo anterior, que de acordo com João Grilo, o anterior era um bispo santo (cf. SUASSUNA, 2014, p. 55s).
Logo, afirmar que Ariano estava sendo anticlerical, é um erro danado. Além do mais, a obra é cheia de princípios doutrinários cristãos católicos. Tais princípios correspondem verdadeiramente a defesa de Ariano, “Eu sou católico de verdade. E em RESPEITO aos padres e bispos bons, eu critico aqueles que são maus”. Com isso, o nobre autor nos brinda com o exemplo de santidade e de amor ao próximo no personagem do frade, que na hora que todos eram para morrer, se dispôs a absolver os pecados deles, para que eles sejam salvos pela graça do Altíssimo.
Esta obra pode muito bem ser usada PRUDENTEMENTE por catequista, a fim de ensinar sobre as realidades eternas e sobre a escatologia. Tal como bem ensina o Cardeal Angelo Amato, é FUNDAMENTAL que hoje se ensine sobre o fim último das coisas, sobre a morte e sobre a vida eterna (cf. AMATO, Angelo. O que é o paraíso? Tradução de: Mário José dos Santos. Lisboa, Portugal: Paulus, 2014. p. 57). Porque a morte, como bem diz Chicó, “Cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre!” (SUASSUNA, 2014, p. 45). O conhecimento da morte e da vida eterna faz com que vivamos a vida bem, e evitemos a todo o custo o mal, assim como o conhecimento da vida eterna nos dá a esperança, a esperança da ressurreição, pois o Cristo Ressuscitado é a nossa esperança e a nossa garantia de que a morte não é o fim. E a obra de Suassuna pode ser uma obra bem catequética para nos ensinar de que a morte não é onde tudo acaba, mas é o começo, o começo de uma nova vida e uma nova qualidade de existência que está por vir.
Recomendo a todos a leitura desta preciosa obra de nossa literatura brasileira!