Thaís | @analiseliteraria 23/07/2020A culpa é sempre indubitável"É um aparelho peculiar." Assim começa a célebre novela de Kafka, escrita em 1914, mas publicada em 1919. Na obra temos um jovem que é condenado à morte em um aparelho de tortura, por um oficial que é ao mesmo tempo juiz e carrasco, sentenciando sempre de acordo com a máxima de que "a culpa é sempre indubitável". O jovem não sabe que foi condenado, menos ainda qual crime cometeu, ignorante do próprio passado e futuro. O crime será entalhado em seu corpo pelo aparelho – literalmente. Foucault, posteriormente, dirá que o corpo é um espaço de manifestação política do poder e da verdade.
O oficial manifesta uma adoração – quase erótica – pela máquina punitiva. Nessa edição excepcional da Antofágica, o advogado e professor Lenio Streck escreve como Kafka é atemporal em apresentar "um sádico gozo com a punição, tornando irrelevante os caminhos – se institucionalizados ou não, se constitucionalmente adequados ou não etc. – a percorrer."
Kafka nos alerta para o totalitarismo, a arbitrariedade de um regime que sentencia sem fundamentar sua acusação, negando qualquer possibilidade de defesa. O aparelho representa "um sistema que se percebe um terrível fim em si mesmo."
Em toda a história da humanidade, desde a inquisição, passando pelo holocausto, e nos dias de hoje, com as fakes news, que são responsáveis por causarem até mesmo mortes (como o caso da senhora morta por ter sido acusada de ser sequestradora de crianças - no fim, não era), não houve algo muito semelhante ao que acontece no livro? Uma instituição como a igreja, um governo autoritário, os "cidadãos de bem", não são todos ao mesmo tempo juiz e carrasco de um "crime" que nem sequer é fundamentado? Indo mais além, eles não usam também de seu próprio aparelho-máquina para punir? Na Inquisição, a fogueira; no Holocausto, os campos de concentração; o aparelho-máquina atual pode ser de vários modelos, linchamentos até a morte, linchamentos virtuais, ataques de ódio, tudo em nome de moral que eles respeitam, como o oficial. São tantas as reflexões que esse livro me causou, não garanto que foi fácil de engolir, mas não à toa que Kafka é o autor do desespero.
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