João Pedro 15/09/2021Lex minus dixit quam voluitHá obras que carregam significados tão potentes e tão polissêmicos que são capazes de municiar laudas e laudas de escritos sobre elas. Sem dúvida, "Na Colônia Penal", de Franz Kafka, é uma delas.
Paradoxalmente, seu enredo é tão simples que não aparenta guardar tantas surpresas. Em uma colônia penal situada em uma ilha, um visitante explorador é convidado por um oficial a assistir à execução de um condenado. No local, além do oficial e do viajante, estão apenas o condenado e um outro soldado-auxiliar. E o aparelho executor, uma engenhoca de tortura que, aos olhos sádicos do oficial, ganha feições de uma criatura de estimação.
A partir daí, os acontecimentos se desenrolam e, ao final, cabe ao leitor tecer suas considerações dentre tantas possíveis.
~~~~~ SPOILER ~~~~~
Particularmente, senti que a figura do viajante, que, mesmo horrorizado com a crueldade do sistema da máquina, nega a mão ao soldado e ao condenado, impedindo-os de embarcar com ele rumo ao continente, representa a nossa sociedade - tanto a de 1919, data da publicação, quanto a atual -, que, ciente das falhas de um sistema repressivo fadado à repetição de um ciclo de violência, fecha os olhos para o problema. Ou até mesmo os próprios habitantes da ilha, que, ainda que descrentes quanto ao sistema de execução, sabem da sua existência e de certa forma o autorizam. Seria o perigo de fecharmos os olhos aos resquícios autoritários de regimes autoritários e ditatoriais, pois uma hora tais arroubos de violência sempre vêm à tona, como estamos vendo agora.
~~~~~ FIM DO SPOILER ~~~~~
Na linguagem jurídica, existe um brocardo latino que diz "lex minus dixit quam voluit", algo como "a lei diz menos do que queria", o que demanda uma interpretação mais extensiva para se adequar ao real sentido da norma. Aqui, pode até ser que a novela de Kafka tenha dito exatamente o pretendido pelo autor, mas certamente suas emblemáticas interpretações são muito mais amplas do que aparentam.
"É um aparelho peculiar - disse o oficial ao viajante explorador, examinando com um olhar um tanto admirado o aparelho que, no entanto, já lhe era bem conhecido. O viajante parecia ter aceitado apenas por educação o convite do comandante, que o incentivara a acompanhar a execução de um soldado que havia sido condenado por desobediência e ofensa a um superior. Mesmo na colônia penal, o interesse pela execução não era muito grande." (p. 15-18)