Mauricio (Vespeiro) 27/01/2018Criativo, excêntrico e com uma escrita impecável.Só fui descobrir “Carbono Alterado”, de Richard Morgan, através da chamada para a nova série da Netflix (que estreou no dia 02/02/18). A ideia é genial. Restava descobrir se a história se sustentava. E foi uma grata surpresa. Morgan é um grande escritor e nos apresenta uma ficção científica maiúscula, visionária, deliciosamente detalhada. Fiquei extasiado com a qualidade do texto, trazendo uma aula do uso de metáforas, sinestesias e personificações. O livro de 2002 é o único do autor publicado no Brasil e, obviamente, só chegou até nós na onda do lançamento da nova série.
A história se passa no século XXV, quando morrer deixou de ser um problema. Especialmente para quem tem dinheiro. Cada pessoa carrega suas memórias (e a própria consciência - ou a “alma”, se preferir) num minúsculo dispositivo alojado na nuca, próximo à coluna cervical. Quando o corpo padece, esse cartucho de carbono é retirado e reimplantado num novo corpo (ou “capa”, como passou a ser chamado). As pessoas pagam seguros a grandes corporações e podem perpetuar suas vidas em outras capas. Dependendo do poder econômico, a nova capa pode ser sintética (a mais barata) ou até um clone (ou mais de um) da sua própria capa original, opcionalmente turbinada com neuroquímica, acrescentando-lhe capacidades físicas e intelectuais. Em alguns casos, se a pessoa não tiver condições de comprar uma capa nova, os familiares podem deixar o dispositivo armazenado e recuperá-lo em algumas ocasiões (alugando uma capa provisória). Existe também a hipótese de uma vida virtual, criada em mundos digitalizados. Os milionários, além de terem seus clones reservados, podem fazer o armazenamento da memória na “nuvem” (usando um termo atual). Desta forma, mesmo que o cartucho seja destruído (o que chamam de MR - morte real), há um backup remoto que pode ser recuperado e reimplantado em outra capa. É a conquista da imortalidade!
Laurens Bancroft é um desses milionários. Aliás, é o homem mais rico do Protetorado, conjunto de planetas colonizados pelo ser humano. Ele é assassinado com um tiro que destrói o cartucho e, como o backup da memória é feito em intervalos, resta o mistério da autoria do crime. A transmissão dos dados para a central leva algum tempo e suas últimas horas de vida não foram registradas antes do último backup. Depois que o reimplante é feito, a investigação da polícia aponta para suicídio e o caso é encerrado. O resultado é inadmissível para Bancroft, que decide contratar um ex-Emissário (espécie de super-soldado) da ONU, Takeshi Kovacs, para descobrir a verdade. Desta forma, Kovacs ingressa num obscuro e tortuoso caminho de conspirações, avançada tecnologia, mentiras, violência, drogas, sexo e traição.
Richard Morgan é hábil com a escrita. Um craque que não tem medo de criar uma infinidade de neologismos - apresentados sem aviso prévio, nenhuma explicação, legenda ou nota de rodapé - para descrever a vida daquela época. Contamos com a tradução feita por Edmo Suassuna para adaptar palavras e termos que não existem no inglês para o nosso português. Um desafio que apresentou muitas falhas (palavras traduzidas de formas diferentes no transcorrer da história), mas que não comprometeram o entendimento. A Bertrand Brasil não costuma ter cuidado editorial, seja na tradução, revisão e até na qualidade de impressão. A edição piora nos capítulos finais, denotando pressa e atropelo na publicação.
É um livro que exige muita atenção durante a leitura. Além dos neologismos inadvertidos, são muitos personagens, funções e cenários. Quem tiver paciência para ler e fazer anotações (quem sabe até fazendo um diagrama) terá menos chance de se perder. O autor deixa algumas lacunas sem pistas que obrigam o leitor a deduzir algumas pontes da trama. Ele também antecipa situações que só serão explicadas bem mais tarde. Portanto, uma leitura atenta faz-se necessária.
Há quem compare a obra de Morgan com “Blade Runner”, pela característica distópica e reflexões filosóficas, pelo agente marginal contratado para uma investigação particular, marginais nas ruas, corrupção da polícia, presença maciça de orientais, mas não passa disso. Philip K. Dick escreveu um clássico com camadas profundas de filosofia, inspirou um cult movie que deu origem a longas teorias. “Carbono Alterado” não apresenta tamanha profundidade, mas é uma história bem resolvida e escrita de forma magistral.
Nota do livro: 7,25 (4 estrelas).