Cristina Henriques 13/04/2018“Um dia, eu já tinha bastante idade, no saguão de um lugar público, um homem se aproximou de mim. Apresentou-se e disse: “Eu a conheço desde sempre. Todo mundo diz que você era bonita quando jovem; venho lhe dizer que, por mim, eu a acho agora ainda mais bonita do que quando jovem; gostava menos do seu rosto de moça do que do rosto que você tem agora, devastado”.
Penso com frequência nessa imagem que sou a única ainda a ver e que nunca mencionei a ninguém. Ela continua lá, no mesmo silêncio, fascinante. Entre todas as imagens de mim mesma, é a que me agrada, nela me reconheço, com ela me encanto.”
“Eu poderia me iludir, acreditar que sou bela como as belas mulheres, como as mulheres olhadas, porque realmente me olham muito. Mas sei que não é uma questão de beleza, e sim de outra coisa, por exemplo, sim, outra coisa, por exemplo espírito. Eu pareço o que quero parecer, bela também se for isso que quiserem que eu seja, bela ou bonita, bonita, por exemplo, para a família, para a família, não mais, posso me tornar tudo o que quiserem que eu seja. E acreditar nisso. Acreditar que também sou encantadora. Desde que eu acredite, que isso se torne verdadeiro para quem me vê e deseja que eu corresponda ao seu gosto, sei disso também.”
“Já estou ciente. Sei algumas coisas. Sei que não são as roupas que tornam as mulheres mais ou menos belas, nem os cuidados de beleza, nem o preço dos cremes, nem a raridade, o valor dos adornos. Sei que o problema está em outro lugar. Não sei onde. Só sei que não é onde as mulheres pensam que está.”
“Essa omissão das mulheres em relação a si mesmas, praticada por elas mesmas, sempre me pareceu um erro.
Não era preciso atrair o desejo. Ele estava em quem o despertava ou não existia. Ele já estava ali desde o primeiro olhar ou jamais teria existido. Ele era o entendimento imediato da relação de sexualidade ou não era nada. Isso, também, eu soube antes da experiência.”
“Não que precise chegar a alguma coisa, o que é preciso é sair de onde estamos.”
“O que acontece é justamente o silêncio, essa lenta labuta durante toda a minha vida. Ainda estou lá, diante daquelas crianças possessas, à mesma distância do mistério. Nunca escrevi, e pensei que escrevia, nunca amei, e pensei que amava, nunca fiz nada a não ser esperar diante da porta fechada.”
“. Eu digo que não é só por ser de dia, que ele está enganado, que sinto uma tristeza que já esperava e que vem só de mim. Que sempre fui triste. Que vejo essa tristeza também nas fotos em que sou menininha. Que hoje, ao reconhecer essa tristeza como a que sempre senti, eu quase poderia lhe dar meu nome, a tal ponto ela se parece comigo. Hoje eu lhe digo que essa tristeza é um bem estar, o de finalmente cair numa desgraça que minha mãe me anuncia desde sempre, clamando no deserto de sua vida.”
“Olhar é ter um movimento de curiosidade por alguma coisa, contra alguma coisa, é decair.”
“Mas, se tivesse previsto, como iria conseguir calar o que tinha se tornado sua própria história? Mentir no rosto, no olhar, na voz? no amor? Poderia morrer. Suprimir-se.”
“Os vagabundos vivem como ele vivia, sem solidariedade, sem grandeza, com medo.”
“fui séria tempo demais, até ser tarde demais, perdi o gosto pelo prazer.”
“Esse amor insensato que tenho por ele continua um mistério insondável para mim. Não sei por que eu o amava a ponto de querer morrer com sua morte. Estava separada dele fazia dez anos quando isso aconteceu e só raramente pensava nele. Parecia que eu o amava para sempre e nada de novo podia acontecer a esse amor. Eu tinha esquecido a morte.”
“Anos após a guerra, após os casamentos, os filhos, os divórcios, os livros, ele tinha vindo a Paris com a mulher. Ele lhe telefonara. Sou eu. Ela o reconhecera pela voz. Ele dissera: queria apenas ouvir sua voz. Ela: sou eu, bom dia. Ele estava intimidado, sentia medo como antes. Sua voz de repente tremeu. E com o tremor, de repente, ela reencontrara o sotaque da China. Ele sabia que ela tinha começado a escrever livros, soube pela mãe dela, que ele havia encontrado em Saigon. E também sobre o irmão mais moço, que ele tinha ficado triste por ela. E depois não havia mais o que dizer. E depois ele disse. Disse que era como antes, que ainda a amava, que nunca conseguiria deixar de amá-la, que a amaria até a morte.”