Wanderreis 28/03/2023
Excertos
Livro II
10. Falando como filósofo, Teofrasto, na comparação dos pecados, disse, como se expressaria quem os comparasse pelo senso comum, que são mais graves as faltas causadas pela concupiscência que as causadas pela cólera.
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Em suma, num caso, antes parece tratar-se de vítima de injustiça, coagida pelo sofrimento a encolerizar-se, enquanto, no outro, de alguém de si mesmo impelido a praticar injustiça, induzido a agir pela concupiscência.
11. Em todos os teus atos, ditos e pensamentos, procede como se houvesse de deixar a vida dentro de pouco.
Se os deuses existem, nada há de temeroso em partir dentre os homens; eles não te haveriam de precipitar numa desgraça; mas se eles não existem ou não se importam com os assuntos humanos, que me interessa viver num mundo vazio de deuses ou vazio de providência?
Existem, porém, importam-se com os assuntos humanos e deixaram na inteira dependência do homem evitar cair nos verdadeiros males; e se houver algum outro além desses, teriam também providenciado para que dependesse de cada qual não lhe acontecer.
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A morte e a vida, a fama e o olvido, a dor e o prazer, a riqueza e a pobreza, tudo isso acontece igualmente na Humanidade a bons e maus, sem constituir honra nem labéu; portanto, não são bens nem males.
Livro III
2. É mister também ter sob as vistas fatos como o seguinte: até os acidentes dos produtos da natureza têm sua graça e sedução.
Por exemplo, na assadura, o pão fende-se em alguns lugares; as rachaduras assim formadas, contrárias, de certa maneira, aos propósitos da panificação, têm o seu atrativo e excitam particularmente a vontade de comer.
Igualmente, quando bem sazonados, os figos racham; nas azeitonas amadurecidas na planta, a aproximação mesma do apodrecimento confere ao fruto uma beleza particular; as espigas vergadas para baixo, a pele da fronte do leão, a espuma a escorrer do focinho do javali e muitos outros exemplos, embora longe de um belo aspecto quando examinados em sim mesmos, não obstante, como consequências de obras da natureza, concorrem para a beleza e atração do conjunto.
Assim a quem tem sensibilidade e inteligência profunda do que há no todo, quase nada, mesmo entre os acidentes advindos como consequências, deixaria de ostentar uma graça peculiar; não menor prazer experimentará contemplando as fauces hiantes das feras na realidade do que nas imitações exibidas pelos pintores e escultores; seus olhos experimentados poderão ver certa perfeição e encanto mesmo nas velhas e nos velhos, e uma graça sedutora nas crianças.
Muitos exemplos semelhantes se encontrarão, que não creria um qualquer, senão apenas quem esteja realmente familiarizado com a natureza e suas obras.
Livro VI
10. Ou uma papa, enleio e dispersão, ou coesão, ordem e providência. Na primeira alternativa, por que desejar eu uma longa permanência numa aglomeração casual e em semelhante mixórdia? Que outra coisa me importa senão como tornar-me terra um dia? Por que me conturbo? O dia da dispersão chegará para mim, faça eu o que fizer. Na segunda alternativa, venero, tenho firmeza e confiança em quem rege.
11. Quando a força das circunstâncias te deixar como que transtornado, volta depressa a ti mesmo; não fiques fora do ritmo além do necessário, porque serás tanto mais senhor da harmonia quanto mais frequentemente voltares a ela.
36. ... Tudo é pequeno, mudável, evanescente.
Tudo provém de lá, ou por ter recebido impulso daquele princípio diretor comum, ou por via de consequência. Portanto, até as fauces do leão, até o veneno e todo malefício, como os espinhos, como o lodo, são resultados do que lá existe de augusto e de belo. Não os imagines, pois, estranhos àquele se que veneras, mas tem em conta a fonte de tudo.
Livro VII
9. ... O mundo é único, composto de todas as coisas; única a divindade, disseminada por todas as coisas; única a substância; única a lei; comum a razão de todos os viventes inteligentes; única a verdade, posto que única a perfeição dos seres da mesma espécie e dos viventes que compartilham a mesma razão.
71. É cômico não fugir à própria maldade – o que é possível; e querer fugir à maldade dos outros – o que é impossível.
Livro VIII
3. O que são Alexandre, Caio e Pompeu ao lado de Diógenes, Heráclito e Sócrates? Estes viram as coisas, suas causas, sua matéria, e tais conhecimentos eram os seus guias; naqueles, porém, a ignorância de quantos fatos! A sujeição a quantos amos!
46. A homem nenhum pode suceder nada que não seja contingência humana; nem ao boi, que não seja de boi; nem à vinha, que não seja de vinha; nem à pedra, que não seja próprio de pedra.
Se, pois, a cada qual acontece o que lhe é costumeiro e natural, por que te agastares? A natureza comum nada trouxe de insuportável para ti.
47. Se uma causa exterior te magoa, não é ela que te molesta, mas o juízo que dela fazes. Está em tuas mãos apaga-lo prontamente. Se alguma das tuas próprias disposições te aflige, quem impede que retifiques o teu critério? Igualmente, se te pesa de não realizares determinado propósito que te parece são, por que não o realizas em vez de te afligires?
– É que um obstáculo mais forte se opõe.
– Então, não te aflijas, pois não é tua a culpa de não o realizares.
– Mas não vale apena viver sem que se realiza.
– Então, deixa a vida de bom grado, tal como morre também quem realiza, mas sem rancor aos obstáculos.
Livro IX
40. Os deuses ou nada podem ou podem. Se não podem, por que rezas? Se podem, por que lhes rogas a graça de não temer nem cobiçar nada disso, nem sofrer por nada disso, em vez de pedir que uma dessas coisas se te depare ou não depare? Afinal, se podem ajudar aos homens, podem ajudá-los também nesses pedidos.
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Fulano roga: “...que fulana me receba”. Roga tu: “...que eu não deseje ser recebido por ela”. Um outro: “...que eu não perca o meu filho”. Tu: “...que eu não sinta o medo de perde-lo”. Em suma, passa a rezar assim e observa o resultado.
42. Quando esbarrares com a impudência de alguém, pergunta logo a ti mesmo: Podia não haver impudentes no mundo? Não podia. Não reclames, portanto, o impossível; esse é um daqueles impudentes que há necessariamente no mundo.
Recorre ao mesmo pensamento ao deparar um celerado, um desleal, um culpado do que for. Com a lembrança de que é impossível não existir essa espécie de gente, serás mais indulgente para com cada um.
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Que de mau e estranho há em proceder o inculto como inculto? Vê se não deves recriminar antes a ti por não teres previsto que ele cometeria essa falta. A razão te dá elementos para entenderes provável que tal pessoa incorra em tal pecado; tu, não obstante, o esqueces e estranhas que o pratique.
Livro XI
3. Que bela é a alma preparada para uma imediata separação do corpo, seja para se extinguir, seja para se dispersar ou sobreviver! Que essa preparação, porém, provenha de um juízo próprio e não dum simples sectarismo, como o dos cristãos: uma preparação raciocinada, grave e, para ser convincente, nada teatral.
8. Não é possível podar um galho do galho vizinho sem podá-lo da árvore toda. Assim também o homem que se aparta de um só homem se desliga de toda a comunidade. O galho, todavia, é podado por outrem; o homem por si mesmo se afasta do próximo, quando o odeia e lhe volta as costas; não sabe que ao mesmo tempo se está amputando da sociedade toda.
9. Os que te impedem de progredir segundo a reta razão, assim como não te poderão desviar da prática do bem, tampouco te arredem da bondade para com eles próprios. Ao invés, preserva em ti mesmo estes dois propósitos igualmente: não só juízo e procedimento inabaláveis, mas também indulgência com aqueles que intentem estorvar-te ou de outra maneira aborrecer-te.
13. Alguém me desprezará? O problema é seu. O meu é não ser surpreendido em ação e palavras merecedoras de desprezo. Odiar-me-á? O problema é seu. De minha parte, serei benevolente e bondoso para com todos e estarei até pronto a mostrar a ele mesmo o seu engano, não insultando nem dando demonstração de minha constância, mas com nobreza e sinceridade, como o célebre Focião, se é que não fingia.
14. Desprezam-se mutuamente, mas mutuamente se bajulam; querem dominar uns aos outros, mas submetem-se uns aos outros.
15. Quão rançoso e falso quem diz: "Resolvi ser sincero contigo! – Que fazes, homem? Esse preâmbulo não se usa. A sinceridade se revela de pronto; deve estar gravada na fronte, soar de imediato na voz, surgir de imediato nos olhos, como o ente amado tudo compreende de imediato no olhar dos amantes.
16. Viver a mais bela vida; o poder de vivê-la reside na alma; basta manter- se indiferente às coisas indiferentes. Será indiferente quem considerar cada uma em separado e no conjunto, lembrando-se de que nenhuma cria em nós opinião a seu respeito nem vem até nós, mas que elas se quedam imóveis e nós é que formamos juízo sobre elas e de certo modo o gravamos em nós mesmos, quando podemos não só deixar de gravar mas também, caso se esconda algures, apagá-lo imediatamente; bem assim, que tal cuidado será por pouco tempo e depois a vida terá cessado.
Que há, porém, de penoso em serem as coisas assim? Se são conformes com a natureza, alegra-te com elas e te serão mais cômodas; se são contra a natureza, procura saber qual o mister conforme com a tua natureza, dedica-te a ele, ainda que apagado; com quem quer que procure o próprio bem, somos indulgentes.
18. E em primeiro lugar: que relação tenho com eles? Fomos feitos uns em vista dos outros e, sob outro ângulo, eu fui criado para juntar-me a eles, como o carneiro ao rebanho, o touro à manada. Volta a partir do princípio que diz: Ou os átomos, ou a natureza regendo tudo. Nesse caso, os seres inferiores existem em vista dos superiores e estes em Vista uns dos outros.
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Lembra-te desses nove preceitos capitais como se fossem presentes das Musas e começa, enfim, a ser um homem, enquanto vives. Cumpre te guardes, com igual cuidado, de te irares com eles tanto como de os bajulares; uma e outra atitude são antissociais e prejudiciais. Nas tuas iras, não esqueças que virilidade não é arrebatamento; a brandura e a serenidade, por serem mais próprias de homem, são também mais viris; força, nervos e bravura tem quem possui aquelas virtudes e não o agastado e incontentável. Quanto mais essa atitude se aproxima da impassibilidade tanto mais perto está do vigor. Como a dor é própria do fraco, assim também a cólera; em uma e outra há ferimento e capitulação.
Se quiseres, aceita uma decima dádiva do chefe das Musas: Não admitir que os maus pequem é de insensato; e desejar o impossível; permitir sejam maus para com outros, mas não admitir que pequem contra ti, e de néscio e de tirano".
36. “Ladrão do livre arbítrio não existe.” É de Epicteto.
37, “É mister”, disse ele, “descobrir a arte de anuir” e, no capítulo sobre as iniciativas: “Vigiar a atenção, para que haja nelas reserva, interesse comum, relação com o valor; abster-se completamente de desejos e não nutrir aversão a nada do que não depende de nós.
Livro XII
2. Deus vê todos os guias despidos do invólucro material, das cascas e impurezas; exclusivamente com sua inteligência atinge apenas aquilo que dele emanou e se canalizou para aqueles seres.
5. Os deuses, que tudo dispuseram com sabedoria e bondade para com o homem, como puderam negligenciar apenas o fato de que algumas pessoas absolutamente virtuosas, após inúmeras alianças, por assim dizer, pactuadas com a divindade e dela por mui longo tempo se tornarem familiares por meio de obras pias e sacrifícios, uma vez mortas já não voltam a existir e se extinguem completamente? Se assim se passam as coisas, podes estar certo de que, se pudesse ser diferente eles o tanam. Se fora justo, seria também possível; se fora conforme com a natureza, esta o acarretaria. O tato de assim não ser, se deveras assim não é, basta para convencer-te de que assim não deve ser.
26. Se te custa suportar alguma coisa, é por esqueceres que tudo ocorre de acordo com a natureza universal; que a falta não é tua; ademais, que tudo que ocorre sempre ocorreu assim, sempre ocorrerá e está ocorrendo agora em toda parte; que um parentesco próximo liga o homem a todo o gênero humano, não pelo sangue ou pela semente, mas pela comunhão da inteligência.
28. Aos que perguntam onde viste os deuses ou quando averiguaste que existem, para os adorares: primeiro, eles não são visíveis a nossos olhos; depois, ora, tampouco vi minha própria alma, sem embargo, respeito-a. Assim também quanto aos deuses; das provas que tenho, em todo momento, de seu poder, deduzo que existem e venero-os.