Lucas 18/04/2017
Soberbo, singelo e retumbante: O terço inicial do suprassumo da fantasia
Há pessoas que nascem com dons. Cantar, ensinar, ajudar... Mas o dom de escrever é talvez o mais importante, já que ele pode ecoar pela eternidade, sendo marcante para sempre. John Ronald Reuel Tolkien, o britânico que criou e emocionou o mundo com as histórias da sua Terra-Média é um sinônimo dessa característica inerente a indivíduos com uma capacidade única e especial.
O Senhor dos Anéis corresponde a um dos maiores artefatos literários produzidos pelo homem no século XX. Sua influência é enorme, seja na própria literatura ou entretenimento em geral. Os filmes da série Star Wars, as histórias de Harry Potter e As Crônicas de Gelo e Fogo são alguns "temas" que, comprovadamente, beberam de muitas coisas presentes na obra-prima de Tolkien. A construção de um mundo novo, complexo e ao mesmo tempo real, é o que une essas obras, permeadas pela fantasia e a luta do bem contra o mal (talvez com exceção dos livros de George Martin, mas isso é outra discussão). Assim como "The Godfather" é para o cinema, O Senhor dos Anéis é para a literatura: um marco, que redefine o escopo em que está inserido.
A saga não é uma trilogia, como os livros e consequentemente as adaptações cinematográficas sugerem. Tolkien concluiu toda a história no início da década de 50 (atravessou a Segunda Guerra Mundial e levou 12 anos para escrevê-la) e os seus editores sugeriram que o material fosse publicado em partes, já que o mundo ainda estava em fase inicial de recuperação no pós-Guerra. A princípio, o autor desprezou essa ideia, pois isso poderia acarretar em uma "forçação de barra" comercial que ele julgava desnecessária e porque poderia diminuir o alcance da história integral. Mesmo assim, a saga foi dividida em três partes e lançada entre 1954 e 1955. Esta preocupação em fornecer o texto completo de sua obra de uma vez só em detrimento de ganhos monetários é capaz de definir muito do caráter de Tolkien, uma das grandes figuras do seu tempo, não só na literatura.
Os leitores da época já haviam sido introduzidos ao mundo místico da Terra-Média com O Hobbit, lançado em 1937. Um dos propósitos da saga do Anel era o de ser um livro para os adultos que, quando crianças, haviam lido a história de Bilbo, Gandalf e os anões na retomada da Montanha Solitária. Assim, O Senhor dos Anéis é infinitamente mais complexo, descritivo e por vezes cansativo, já que os riscos e perigos relatados em O Hobbit são "brincadeira de criança" perto de tudo o que ocorre em suas páginas. A relação entre os dois é muito forte, mas não indispensável ao entendimento de um ou de outro. Mas diante do grau de complexidade e até mesmo em aspectos cronológicos de tudo o que é relatado nas obras, é fundamental que O Hobbit seja lido primeiro, pois isso fornece uma compreensão bastante clara dos acontecimentos d'O Senhor dos Anéis. Além disso, a história de Bilbo é curta e lúdica, não tomando muito tempo para ser "devorada".
A Sociedade do Anel, a primeira parte dessa "trilogia editorialmente forçada" começa cerca de 60 anos (o que não é grande coisa no mundo dos Hobbit's) após a partida de Bilbo Bolseiro para a Montanha Solitária. Como O Hobbit narra, Bilbo encontra nessa aventura um anel mágico, que o ajuda muitas vezes desde então. Ao retornar da viagem, ele se torna recluso e estranho, mas nutre um forte carinho por Frodo, seu parente e que se torna o protagonista de toda a saga do Anel. Ao fim dos dois primeiros capítulos (principalmente do segundo) d'A Sociedade do Anel, tudo é esmiuçado e o leitor já sabe o que aguarda os hobbit's, envolvendo-se a partir de então em uma jornada longa, dura e sombria. O livro começa com a mesma "pegada narrativa" juvenil do seu antecessor, mas aos poucos vai ganhando ares sombrios, dramáticos e até tristes em alguns momentos, sendo essa intensificação da narrativa um dos grandes destaques desta primeira obra da saga.
Gandalf, o amado mago, assume o mesmo papel importante que teve em O Hobbit: o de um líder, que guia, conduz e, acima de tudo, ensina. Apesar de seus frequentes sumiços (muitas vezes inesperados), ele toma para si certo protagonismo, pois sua calma, sabedoria e poder emocionam e cativam qualquer leitor. O velho "Mago Cinzento" é o maior coadjuvante da história da literatura moderna por aliar todas essas qualidades a um bom humor inconfundível, que aparece nos momentos certos e a um senso paternal, que surge nos momentos mais tensos. Outros personagens dividem com ele essa importância, especialmente Aragorn, filho de Arathorn (quem leu o lerá A Sociedade do Anel sempre irá mencionar a sua paternidade em locais apropriados), um homem sábio, forte e muito corajoso.
A complexidade da Terra-Média, com suas raças, lugares e até lendas, associada a uma descrição extremamente detalhista de Tolkien, fazem com que a leitura se torne cansativa em alguns momentos, especialmente aos não-fãs de fantasia ou que não estão habituados a tamanha minúcia. A descrição dos locais onde a história vai se desenrolando atinge até mesmo as rochas, as raízes das árvores, as folhas, as plantas, o solo... Tudo parece ter uma origem ou uma lenda, que por vezes é relatada em dezenas de canções e poemas, que permanecem com rimas e musicalidade mesmo em português (graças ao louvável trabalho dos tradutores Lenita M. Rímoli Esteves e Almiro Pisetta da editora Martins Fontes). Mas uma leitura cansativa não é enfadonha: a excessiva descrição faz com que, acima de tudo, o leitor tenha uma mínima noção do tamanho da criatividade e originalidade do autor, aumentando ainda mais o seu encanto.
Hobbit's, elfos, homens, anões, magos, orc's e troll's: tudo se mistura, mas nada se confunde. A habilidade de Tolkien é singular, é contemplativa, é única. Mesmo que não tenha sido concebido para isso, A Sociedade do Anel tem um desfecho marcante, que gera imensa expectativa para a parte seguinte, As Duas Torres. Afinal de contas, a missão proposta no início está longe de acabar e Tolkien ainda tem muito a surpreender e emocionar.