Paulo Sousa 30/12/2021
Leitura 33/2021
Memórias de minhas putas tristes [2005]
Orig. Memorias de mis putas tristes
Gabriel García Márquez (Col, 1927-2014)
Record, 2006, 176p
Trad. Eric Nepomuceno
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?Eu navegava no amor de Delgadina com uma intensidade e uma felicidade que jamais conheci em minha vida anterior. Graças a ela enfrentei pela primeira vez meu ser natural enquanto transcorriam meus noventa anos. Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem da minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio? (pág.73/74).
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O livro, como o próprio título aduz, é uma espécie de registro memorialista do narrador que, no alto do aniversário de seus 90 anos, decide comemorar a improvável data com uma última noite de amor. Acostumado a uma vida solitária, ermitã, o decano faz uso da mais antiga das profissões e se dirige ao cabaré de Rosa Cabarcas, a velha cafetã amiga de longa data, a fim de selar sua longeva existência com um jovem virgem ao estilo Nabokov.
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Mas, como sempre, o improvável, comum aos livros de Gabo, está aqui presente também neste volume que acabo de ler e com o qual findo as leituras deste ano terrível: nas muitas noites em que repetidamente tenta consumar o ato, o velho narrador acaba por se apaixonar pela donzela, a quem nosso patriarca sempre encontra no quarto dormindo sob o efeito de doses de valeriana. Eles sequer trocam uma palavra de fato. As costumeiras idas do velho à casa de Cabarcas se transformaram num rito onde, além do embelezamento do ambiente, há também o aprofundamento de um sentimento que nosso narrador, no alto de nove décadas de vida, ainda não experimentara.
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Como todo sentimento, houve seus altos e baixos. Os tão conhecidos anseios, dúvidas, certezas, alegrias e a fúria ante o menor sinal de que aquela relação foi corrompida, tomam corpo e alma ao velho e são momentos dramáticos e hilários vê-lo cantarolar pelas ruas da cidade imaginária o seu amor recém descoberto ou derramando lágrimas de desespero por quase perder Delgadina (era o nome da menina)! Pensando que perdera Degaldina para sempre, ele vai fiando as lembranças de outras cortesãs, às quais ficaram marcadas na sua memória sobretudo por suas tristezas.
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Gabo também entremeia na trama o ofício de jornalista e cronista diário do velho narrador, a cujo texto, há anos frio, austero e decadente, de uma hora para outra ganhou novas cores, novos floreios como que de rapaz apaixonado, que tanto chamou a atenção dos leitores da gazeta que acabou sendo usado por estes como verdadeiras cartas de amor (quem leu ?O amor nos tempos do cólera? saberá o que estou dizendo, pela perspicácia de Florentino Ariza!).
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E foi assim que Gabo, esse escritor soberbo e essencial, concebe mais uma de suas belas narrativas de amor, onde o sentimento perpassa os anos, as décadas, à busca do aconchego de um coração amante, seja ele velho, esteja ele aparentemente cansado de viver. Um ótimo livro para fechar o ano! Salve!