João Pedro 08/09/2021As três vozes das meninasVamos lá, eu adoro histórias com múltiplas personagens, principalmente quando cada uma é bastante singular e bem construída. Logo me empolguei ao ver que "As Meninas" possui três protagonistas de personalidades absolutamente distintas, Lorena, Lia e Ana Clara, todas universitárias residentes em um pensionato de freiras na São Paulo de 1973, em meio à ditadura militar. Efeito "uau" para esse pano de fundo em que Lygia Fagundes Telles meteu as suas meninas. Receita infalível para captar a atenção do leitor em potencial, cuja curiosidade é atiçada para se descobrir que tipo de coisa pode sair dessa inusitada mistura.
E o que temos é um verdadeiro deleite literário.
De fato, Lygia eleva o nível de excelência narrativa ao não só criar três protagonistas de características singulares, mas também ao definir três vozes narrativas tão distintas que mais parecem ter sido escritas por três autoras. Lorena, romântica e sentimental, floreia seus capítulos como que regando um perfumado jardim, cheio de espinhos, sem sequer sair de seu quarto. Lia - ou Lião, como chamam as amigas -, está ocupada demais com a revolução e o movimento de resistência para se ocupar de frivolidades, o que se reflete na narração mais objetiva das três. Ana Clara, constantemente chapada, narra sua realidade lisérgica, e o leitor que se vire para acompanhá-la.
Constantemente alternando entre narração em primeira e terceira pessoa, Lygia Fagundes Telles se utiliza do fluxo de consciência em abundância, de modo que o espaço temporal em que se passa a trama principal da obra é relativamente curto; seu ouro se esconde, porém, na consciência de cada uma de suas meninas, que refletem sobre suas vidas em amadurecimento em meio a situação de repressão vivenciada na época. Não há como não se deleitar com esse precioso romance de Lygia Fagundes Telles.
"Sentei na cama. Era cedo para tomar banho. Tombei para trás, abracei o travesseiro e pensei em M.N., a melhor coisa do mundo não é beber água de coco verde e depois mijar no mar, o tio da Lião disse isso mas ele não sabe, a melhor coisa mesmo é ficar imaginando o que M.N. vai dizer e fazer quando cair meu último véu." (p. 13)