Coruja 01/05/2012Sou fã incondicional do Umberto Eco, do tipo completamente apaixonada que lê de tudo o que a criatura escreve – quer seja ficção, quer sejam tratados de semiótica e crítica literária, se tem a assinatura do homem, estarei na fila para comprar.
Não é assim nenhuma surpresa que tão logo foi anunciado o lançamento de O Cemitério de Praga, eu já estava providenciando a minha cópia antes mesmo de sair a sinopse. Felizmente, do tempo em que vi o livro pela primeira vez (em italiano) e ele ser traduzido aqui no Brasil, não chegou a se passar tanto tempo, de modo que não precisei cometer a loucura de comprar um livro numa língua que não falo.
Por minhas experiências pretéritas com o autor, sei que é preferível esperar traduções. Por mais fluente em inglês que se possa ser, o estilo de Eco muitas vezes mergulha a história no vocabulário da época em que a história se passa e nem sempre é fácil desvendar inglês arcaico... ou neologismos que misturam três ou quatro idiomas. Este título em particular não apresenta tais dificuldades, uma vez que a história se passa já na era moderna (nada de vernáculos medievais).
Ainda assim, Eco nem sempre é um autor fácil de se ler. Mas é um desafio que sempre vale muito à pena – suas histórias são sempre fascinantes, surpreendentes, do tipo que bagunçam sua cabeça até você chegar à última página do mistério.
O Cemitério de Praga não é uma história policial, mas é um grande mistério, um verdadeiro novelo de lã envolvendo dupla personalidade, amnésia, uma busca pelo passado, a construção de uma identidade – ou reconhecimento da mesma. É uma investigação contínua: quem é Simonini e o abade Dalla Picolla, quais são os seus papéis no ninho de conspirações que ele adivinha enquanto procura por si mesmo?
Simonini é o único personagem fictício da história. Nas mais de quatrocentas páginas do livro, ele vai encontrar jesuítas, socialistas, satanistas e espiões e irá construir uma das maiores fraudes da História – os famosos Protocolos de Sião, usados por Hitler para justificar a perseguição aos judeus. Seu caminho cruza com os do revolucionário Garibaldi, Alexandre Dumas e Freud e ele tem uma mão num dos casos de erro judicial mais famosos do mundo – o caso Dreyfus.
A rica paisagem histórica que Eco nos apresenta nos deixa com gostinho de quero mais. Simonini é desprezível, sim, mesquinho, ignorante e preconceituoso; mas é também fascinante em sua capacidade de moldar a verdade, de fazê-la se dobrar aos seus propósitos.
A relatividade da verdade é um tema constante na obra do italiano, bem como a paranóia das teorias da conspiração. Em O Pêndulo de Foucault ele já tinha feito algo parecido – mas lá, as mentiras eram criadas como um jogo e a eventual crença nelas era de um bando de fanáticos; enquanto aqui, Simonini tem plena consciência de que as ilusões que cria são para o grande público, alimentam governos e justificam crimes.
É a mesma premissa da idéia de Hitler da Grande Mentira – e não acho que seja uma coincidência que as palavras que o ditador escreveu em seu Mein Kampf estejam na essência do que Simonini faz – quanto mais colossal o tamanho da mentira, mais fácil que se acredite nela, pois é difícil crer que alguém distorceria a verdade de forma tão absurda.
Uma mentira dita cem vezes torna-se verdade.
É um alerta precioso numa época em que multiplicamos virais nas redes sociais sem ter consciência da veracidade das informações que compartilhamos. As conseqüências podem ser mais do que você barganhou.
(resenha originalmente publicada em www.owlsroof.blogspot.com)