Vanessa - @livrices 12/01/2021Apesar de ser catalogada nos escritos ficcionais de Kafka, Carta ao Pai, ao menos inicialmente, foi realmente uma longa carta escrita para ser entregue a Hermann, pai de Franz (vou chamá-lo aqui de Franz, portanto, já que nesta ocasião escrevia como filho e não como escritor).
Antes de tudo, é necessário termos em mente que Franz descreve cenas, lembranças e sensações causadas por sua relação com o pai desde a infância. No entanto, sabemos que a memória é a representação mental do passado, e, portanto, trata-se do que restou em Franz, do que foi interpretado e assimilado por ele, e não necessariamente do que ocorreu. Isso significa que devemos tomar a narrativa mais como uma espécie de recordação e elaboração psicanalítica do autor, e menos como a verdade absoluta dos fatos.
Carta ao Pai é um acerto de contas de Franz com Hermann, mas, ao mesmo tempo, é um desnudamento do filho. Chega a nos causar constrangimento, tamanha é a nudez de Franz ao relatar as inúmeras humilhações causadas pelo pai, e o quão pequeno e incapaz o autor se sentiu durante toda a sua vida.
Hermann, o pai de família autoritário, é a representação da masculinidade hegemônica. Ele abarca em si não só o patriarca, mas também o Deus e o tirano. Pelos olhos do pequeno Franz, o pai era o ápice da virilidade – um verdadeiro Kafka. O filho, oposto a tudo isso, lamenta por se considerar um ~Löwy (sobrenome da mãe) com um certo traço kafkiano~. Reparem que o próprio Kafka considerava os atributos ligados à mãe (timidez e fraqueza) como inferiores aos do pai (assertividade e potência).
As lembranças que Franz relata são muito dolorosas, especialmente as da infância. Nunca houve agressão física, mas o abuso psicológico e moral era constante. A culpa foi um sentimento muito presente, mas a repressão também. Franz cresceu como um sujeito exageradamente castrado pelo pai e culpado tanto por suas ações quanto pelas omissões. As consequências da relação com o pai afetariam toda a vida do autor, em especial na área afetiva (bem visível em suas tentativas de noivado) e em sua obra ficcional (sempre há um personagem identificado com pai autoritário). Não podemos dizer, com certeza, que faltou amor, mas as formas de expressão do sentimento foram, no mínimo, equivocadas.
Além do mais, o próprio Franz traz na carta um entendimento recíproco da situação do pai, relembrando a infância de Hermann e como a vida o fizera um sujeito sofrido. Ao que parece, ao mesmo tempo em que demonstra como o pai o transformou no homem que foi, também realiza um exercício de empatia e desculpa, entendendo o pai também como vítima das estruturas econômicas e patriarcais.
A Carta nunca foi entregue a Hermann. Houve uma tentativa, mas a mãe de Franz recusou-se a entregá-la ao marido. Ainda que tivesse entregue, Franz não acreditava que o pai se prestaria a lê-la, tamanha a indiferença perante tudo o que o filho fazia. Assim, o autor ainda editou o manuscrito em um momento posterior, adicionando ao final uma suposta resposta que poderia ter sido dada pelo pai, o que enfatiza a questão do entendimento recíproco. Como o próprio Franz anuncia, a carta não foi escrita com a finalidade de condenar o pai, ou absolver-se das responsabilidades, mas tão somente para os ~tranquilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais fáceis para ambos~.
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