Barbara.Spini 18/09/2020
Um arrebatador prelúdio à obra de Franz Kafka
É assim que posso definir a pungente “Carta ao Pai” - escrita em 1919 por Franz a Hermann Kafka -, por seu caráter altamente autobiográfico, analítico, franco e poético da relação de um filho com o seu pai, a qual fornece ao leitor não somente uma possibilidade de identificação com os acontecimentos originados no seio familiar que permearam a vida pessoal do autor (sendo esta identificação, ao meu ver, a principal fonte de arrebatamento durante a leitura, além, é claro, da incrível sensibilidade com a qual tudo isso é descrito), como também a gigantesca parcela destes eventos que influenciou a obra kafkiana como um todo. Desde o início da leitura, Hermann Kafka nos é apresentado como um homem grande, em todos os sentidos - sua imponência física podia muito bem ser comparada em proporção ao quão intenso era o seu domínio na esfera familiar -, em contraste a Franz que mantém uma percepção (inúmeras vezes mencionada na carta) de si como algo pequeno, incapaz e fracassado. A causa desses sentimentos que o perseguiram durante toda vida (gerando distúrbios na sua carreira e até nos seus relacionamentos amorosos) é detalhadamente descrita no documento como fruto do seu relacionamento malogro com o pai, o qual cerceava-o extenuantemente, tanto indireta quanto diretamente, com suas críticas irônicas, seu comportamento fortemente tirânico e a sua aparente insatisfação com tudo o que concernia ao filho - inclusive, esta é apontada a razão para que Franz tenha tornado-se um ser compulsoriamente indeciso, inapto a tomar quaisquer decisões por medo do fracasso e, principalmente, por medo do julgamento paterno, do qual, sem sucesso, tentou incessantemente fugir (para mim, uma das partes mais comoventes do livro se dá quando Franz compara a presença de seu pai em sua vida com um domínio geográfico: “Às vezes, imagino o mapa-múndi aberto e tu estendido transversalmente sobre ele. Então tenho a sensação de que para mim entrariam em consideração apenas as regiões que tu não cobres ou que não estão ao teu alcance. De acordo com a imagem que tenho de teu tamanho, essas regiões não são muitas nem muito consoladoras […]”). Nesse sentido, o diálogo com os livros de Kafka se faz quase que obrigatoriamente, como, por exemplo: ao nos imaginarmos na posição do personagem Josef K., do livro “O Processo”, em seu julgamento em relação ao qual ele mesmo angustiantemente desconhece a motivação, podemos também enxergar a agonia existencial do jovem Franz Kafka, perdido nas cotidianas acusações infames de seu pai.
Em suma, esta carta é um projeto, pois nunca foi de fato entregue e, mesmo que fosse, ela não surtiria um efeito reconciliador (nem almejava tal feito, visto que certas diferenças são levantadas como irreparáveis). Portanto, vejo que Kafka, ao escrever a carta ao seu pai, buscou o mesmo que buscava ao escrever seus outros livros: uma espécie de consolo pelo registro dos sentimentos, diante da fragilidade e do insucesso que era sua vida; o que, de certa forma, deixa um retrato de triste impotência em relação ao passado.
“Minha atividade de escritor tratava de ti, nela eu apenas me queixava daquilo que não podia me queixar junto ao teu peito”
- excerto da carta de Franz a Hermann Kafka, novembro de 1919.
(Na tentativa de fazer justiça ao autor da obra em questão, esta resenha foi escrita quase que inteiramente com frases longas ;D)