Lucas 06/03/2018
Deixe Gabo te levar e nada será como antes
Tudo que cerca Gabriel García Márquez (1924-2014) ou simplesmente Gabo, é epopeico. Sejam as dificuldades de toda ordem que antecederam o lançamento do eterno Cem Anos de Solidão (1967) até o seu reconhecimento como vencedor do Nobel de Literatura de 1982, a vida desse humilde colombiano foi cheia de ares lúdicos, nas quais ele conseguiu transpor com maestria em suas obras. Sua narrativa única, de pouquíssimos diálogos e cheia de descrições poéticas, faz dele totalmente especial: não há outros livros construídos com essa ludicidade, e o leitor que se debruça pela primeira vez em suas obras jamais esquecerá os "passeios" que elas proporcionam.
Esta, na verdade, é apenas a essência do chamado realismo mágico, movimento literário criado por ele a partir de Cem Anos de Solidão. Misturando realidade com lendas diversas, Gabo monta sua prosa sobre uma visão solitária do mundo, que se deteriora e retorna em si mesma, gerando um espiral de emoções inigualável. Na bagagem literária de um apaixonado por leitura, Gabo é o marco, o divisor de águas: nenhum outro autor é tão particular na forma de narrar.
Cem Anos de Solidão é, de uma forma natural, a obra que mais chama a atenção do autor. Com uma linguagem arrastada, mas incrível sob o ponto de vista poético, a saga da família Buendía é um livro para ser lido por leitores mais experientes: a repetição de nomes e a infinidade de personagens podem fazer o leitor se perder num manancial de magia e histórias fantásticas. Já O Amor nos Tempos do Cólera, sua inegável segunda maior obra, lançada em 1985 (quando ele já era reconhecido mundialmente), trás a vantagem de se compor mais por histórias místicas do que pela descrição de gerações e gerações de uma família secular. E todo esse detalhamento é feito sob a luz de uma linda e inocente história de amor.
Como já é recorrente em obras de Gabo, aqui ele trata da solidão e do abandono, de uma forma muito mais direta do que na saga dos Buendía. A história se passa numa região fictícia do Caribe, entre o final do século XIX e começo do século XX. Lá, havia um jovem chamado Florentino Ariza, funcionário do telégrafo, poeta e retraído. Advindo de uma família humilde, sua vida é transtornada pelo encontro com a jovem Fermina Daza, filha de um abastado e misterioso comerciante. Este panorama inicial sugere o que de fato parece: trata-se um amor impossível, entre a menina rica e o plebeu, aliado à presença do doutor Juvenal Urbino, que completa o triângulo amoroso que acaba surgindo. Mas sob a escrita do autor, nada é feito convencionalmente: a relação dos protagonistas é descrita com uma infinidade de detalhes místicos e aparentemente improváveis. Um papagaio que fala latim, o olfato super-desenvolvido de um personagem, a obsessão incontida por cartas, entre vários outros aspectos, trazem o inigualável ar de fantasia que apenas as narrativas do realismo mágico provocam.
Com apenas 6 capítulos (a bela edição da Editora Record de 2016 possui quase 400 páginas), O Amor nos Tempos do Cólera é um livro cansativo de ser lido. Não que a leitura não renda, mas o nível de detalhamento e de poesia acaba amarrando o processo. No entanto, isso é algo que chega a ser ótimo. O primeiro capítulo apresenta o "tempo presente", e culmina com o encontro mais recente dos protagonistas (ocorrido a partir de uma cômica tragédia). A partir daí, Gabo volta ao passado e vai montando toda a atmosfera romântica que cerca o amor de Florentino e Fermina (eis um traço que vem de Cem Anos de Solidão: a semelhança na escrita e pronúncia dos nomes dos personagens), bem como os desencontros e complicações pelas quais essa relação improvável vai passando. Nas últimas páginas do penúltimo capítulo essas "pontas" se juntam, o que culmina com a consolidação da narrativa. Uma das formas mais eficazes de tornar a leitura ainda mais fascinante é algo bem peculiar: ler o livro em voz alta ajuda o leitor a assimilar melhor, por meio das pontuações, o caráter fantasioso e poético da escrita. Inegavelmente isso cansa, mas torna a experiência de leitura ainda mais única.
Gabo fez algo que, na atualidade literária romântica, repleta de modismos e pornografias explícitas, é impensável: explorou as múltiplas facetas de um amor silencioso, que não precisa ser recíproco para que seja eterno e infinito. Para ele, o aspecto carnal (que também aparece na narrativa) é algo à parte, uma necessidade do ser humano. O verdadeiro amor, aquele que se renova com o tempo, é paciente, bondoso e altruísta, mas doente: de uma forma ou de outra, quando amamos somos imiscuídos de uma anomalia que afunila nossa razão e nossos sonhos. Este aspecto ajuda a explicar em parte o título da obra: quando se apaixona, adquirimos um tipo de cólera e passamos a viver com a única doença pela qual vale a pena morrer: o amor.
Debruçar-se sobre a obra, portanto, é estar em contato direto com um vírus, que condena a saúde literária do leitor. Somos vítimas do arrebatador realismo mágico da narrativa, e para esse mal não há cura. Na verdade, esse distúrbio precisa ser renovado, ao manter-se em contato frequente com as outras obras de Gabo. É, por isso, um malefício da qual ninguém jamais quererá ser libertado, sempre tendo-se a convicção de que sendo uma cólera ou não, o amor, pelas pessoas ou pela literatura, sempre será algo a ser vivido.