Kelly Albuquerque 19/11/2019
Uma radical perspectiva da velhice
Após esta leitura, mudamos radicalmente nossas verdades sobre a velhice. Aliás, se à velhice você propõe como parceira a presença indígna da iminência da morte, prepare-se! A leitura lhe permitirá elaborar novas perspectivas. Embora reconheçamos em si mesmos o processo do envelhecimento, a verdade é que somos filhos de uma cultura que fala da velhice para se esconder dela. Ao reduzirmos o ?velho? à rótulos assépticos e politicamente corretos como a ?pessoa idosa? e ?melhor idade?, respectivamente, na busca pela qualidade de vida, não acessamos as perdas ricas que ele nos presenteia. Atravessados pelo cólera, não apenas como doença epidêmica, mas, sobretudo, como impulso forte que incita contra aquilo que ofende, Florentino Ariza e Fermina Daza, indignados com o árduo calvário do comodismo, mostram que o amor é um objeto de desejo que não deve se apaziguar as amarras do destino, devendo, inclusive, sobreviver em condições adversas e agonizantes. Por entender que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e, graças a este artifício, conseguimos suportar o passado, Florentino Ariza, mesmo tendo tido seu amor recusado na adolescência, não desiste. Contudo, não espera de modo passivo e melancólico. Tem papel ativo. Se torna reconhecido e rico, vive aventuras sexuais das mais diversas e adquire conhecimento do mundo. Após 50 anos de investimento libidinal que toca às raias do infinito, o encontro acontece. Fermina Daza, moça de família rica mas ?criada? de seus preconceitos, após perceber a pobreza de si diante da perda do marido, direciona seu olhar para aquele a quem ela rejeitou no passado. Não se enganem. O livro não traz nada de romântico e idealizado. Vemos, ao contrário, a expressão daquilo que Nietzsche chamou amor fati, ou seja, um amor pelo real. A beleza da feiura escancarada na velhice permite aos amantes viver de modo intenso e sincero, não tendo mais que (se)enganar. Ademais, tomamos coragem e acessamos nossa vida em sua versão bela e assustadora. Afinal, é ela, a vida, mais que a morte, o que não tem limites.