spoiler visualizarGabriel 08/08/2021
Não tente entender tudo (é impossível, com exceção do autor) - apenas sinta
A sensação de terminar A Montanha Mágica é absolutamente incrível, pois se trata de um baita calhamaço, com capítulos muito densos e profundos, sem mencionar da importância desse clássico. Mas a subida da montanha me trouxe sensações interessantes ao decorrer da jornada, e quando cheguei ao topo, fiquei absurdamente encantado com a obra, mesmo que esta tenha (a meu único ver), uma série de poréns e não esteja enquadrada como uma leitura favoritada ou 5 estrelas.
Nessa obra, além de ter a consciência que trata-se de um clássico (então aceite que vai encontrar muitas palavras difíceis, a descrição de algumas situações fáticas que não farão muito sentido à luz do nosso mundo moderno, digressões longuíssimas), prepare-se para encontrar de tudo: desde capítulos sobre reflexões sobre o tempo, o amor e a morte, além de matemática, psicologia, astronomia, botânica, anatomia e biologia celular, música clássica, espiritismo, política européia do século XIX, filosofia, maçonaria, etc.
Mas como isso é possível?
Graças ao querido protagonista Hans Castorp, que mergulha profundamente em uma jornada de autoconhecimento e maturação durante o período de estadia no sanatório Berghof, onde tem a oportunidade de se refletir e vivenciar uma série de coisas intrinsecamente relacionadas à alma humana, sem mencionar os campos da intelectualidade acima mencionados.
No decorrer de sua jornada, o protagonista vai reconhecendo a amorosidade que vive dentro de si mesmo e literalmente a transborda a todos! O narrador desse livro tem uma voz única e mesmo que as vezes subestime o protagonista (há vários trechos que ocorre um certo desdém de Castorp, como um ser humano de não muita grandiosidade, etc), no fim das contas, o fato de não ser excessivamente grandioso ou erudito é o que o destaca, é o que o torna tão querido e amável.
A meu ver, o protagonista representa um ponto de equilíbrio em um cenário tão dualista. Hans é a máxima ideia de se ir "pelo caminho do meio", não polarizar tanto de um lado como para o outro.
Especialmente se exemplificarmos tal contexto em relação aos debates filosóficos do jesuíta Naphta x humanista Settembrinni. É notável que este último possui mais bom senso, ideias mais tangíveis e um prospecto um tanto quanto mais liberal; porém, seu discurso é cheio de controvérsias e muito racista (relevemos, pois se trata de uma obra do século passada) - ou seja, o que quero dizer é que Settembrinni não deve ser encarado como um mentor extremamente maravilhoso. Claro que, a meu ver, 90% das coisas que o Naphta fala são bobagens, mas suas percepções sobre a espiritualidade (não falo de religião em si) e sobre a metafísica - temas absolutamente desprezados pelo humanista - me chamaram a atenção em alguns pontos.
Temos então aquele eterno debate entorno de matéria x espírito, fé x ciência, porém, Hans concilia essas divergências e demonstra que uma necessariamente não precisa excluir a outra. Daí a importância do capítulo "Neve" (apesar de muito cansativo): o protagonista meio que sofre uma epifania ao ficar preso em uma tempestade de neve, mas tira lições muito bacanas sobre o amor genuíno e a bondade, o que transcende todo esse dualismo vivido na montanha.
Claro que essa é uma pequena exemplificação dessa obra, que é muito mais profunda e possui muitas camadas além.
Sobre a experiência de leitura em si, realmente não foi um mar de rosas completo. O autor é um erudito, escreve maravilhosamente bem, tem uma inteligência de chocar. Todavia, sou um reles mortal rsrs, e durante muitos trechos (especialmente os filosóficos) eu voltava e lia de novo pra ver se entendia de verdade.
Entendi tudo? Óbvio que não. Teve parágrafos que eu tentava, tentava, entendia umas coisas que o autor queria passar, mas não era algo completo. Parecia que faltava ligar uns pontos na cabeça.
Mas foi aí então que decidi largar de lado essa estratégia, pois percebi que um livro dessa magnitude é meio que impossível de ser entendido em 100% (a não ser pela brilhante mente por trás dele, talvez). Daí eu lia sem aquela cobrança de tentar entender tudo, foi uma experiência mais de sentir do que racionalizar. E deu super certo.
Leria de novo? Com certeza, mas esperemos uns 10 anos. Quem sabe eu já não esteja mais maduro e consiga tirar mais proveito.
Mas a experiência no geral foi bastante enriquecedora. Sensação de que consigo ler (quase) todo clássico já lançado até hoje e que a experiência pode ser efetivamente aproveitada, afinal, já consegui escalar montanhas mais tortuosas.