Mari 21/07/2021
Sobre o tempo...
"Pode-se narrar o tempo, ele próprio, o tempo como tal, em si mesmo? [...] O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida: está ligado a ela, indissociavelmente, como aos corpos no espaço. Ele também é o elemento da música que, ao medir e segmentar o tempo, torna-o divertido e delicioso de uma só vez: nesse ponto, como mencionamos, ela se assemelha à narrativa que[...] não se pode apresentar senão sob a forma de uma sequência de fatos, como algo que se desenvolve e necessita do tempo, mesmo que deseje estar toda presente a cada instante que transcorre" (MANN, 2020, p.622)
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Essa provavelmente foi uma das leituras mais importantes da minha vida. Em primeiro lugar, porque ler "A montanha Mágica" já era um desejo de muitos anos e depois, porque foi um livro que me impactou profundamente. Há aqui uma proposta complexa e brilhante de fixação do tempo exatamente como um tempo infixável.
Neste romance, acompanhamos a história do jovem Hans Castorp que sai de Hamburgo, onde mora, para visitar o primo Joachim em um sanatório para tuberculosos, localizado em Davos. Castorp está prestes a iniciar o emprego dos sonhos na sua cidade natal, mas precisa tirar algumas semanas de repouso antes disso por conta de uma anemia, assim estaria plenamente disposto a iniciar seu trabalho como engenheiro naval. A questão é que Hans Castorp pretendia passar três semanas no sanatório Berghof , mas acaba ficando por sete anos. Só isso já basta para entender que o tempo aqui pode ser visto como uma temática central. Chegando ao sanatório, o protagonista já percebe que o tempo ali passa de forma diferente, as horas se arrastam longamente em um primeiro momento e os dias, meses e anos passam velozmente a partir de um certo ponto. Os próprios pacientes já deixam claro que a menor unidade temporal que se conhece em Berghof é um mês, ninguém passa menos do que isso lá em cima. Diga-se de passagem que viver ali nas montanhas não parece ser um grande sacrifício, pois o lugar era uma espécie de hotel cinco estrelas, com muito conforto e fartas refeições. A dinâmica cotidiana de Hans no sanatório consistia em aferir a sua temperatura, flertar e desfrutar das benesses do clima. Nós, os leitores, mergulhamos em uma jornada de autoconhecimento de Hans Castorp, mas também de reflexão sobre o pensamento e as vivências daquele momento que antecede a Primeira Guerra Mundial. Esse percurso tem dois tutores antagônicos, tanto para Castorp, quanto para nós: o literato humanista Lodovico Settembrini e o jesuíta ortodoxo Leo Naphta, que disputam aguerridamente a simpatia do jovem engenheiro para suas correntes de pensamento. Nós, aqui no século XXI, nos identificamos com muitos dos debates entre as duas personagens tão emblemáticas, dentre eles liberalismo x conservadorismo e religião x laicidade.
De qualquer forma, o tema que nos arremata é, de fato, o tempo. Toda a narrativa parece ser uma construção metalinguística desse conceito, porque o protagonista e o próprio narrador se dedicam a proposições metafísicas sobre a passagem do tempo que se dá de forma muito diferenciada “lá em cima”. Simultaneamente, o leitor também tem uma experiência única com a percepção temporal demandada pela leitura. Veja bem, o livro é para nós o que os Alpes suíços são para Hans Castorp: um ambiente com sua própria concepção da passagem do tempo.
Não é uma obra que se lê de uma vez. Pelo menos, pra mim não foi. Enquanto escalava ess"A Montanha Mágica", precisei ler outros dois romances mais leves, para desopilar... Ainda assim, terminei em uma enorme ressaca. Porém, inegavelmente, foi uma das coisas mais geniais com que me deparei em toda a minha vida de leitora. Eu estou deslumbrada com o que Mann fez neste romance e completamente envolvida com o livro. A arte da palavra tem esse poder fascinante de abrir nossos olhos para as coisas do mundo, da nossa e de outras épocas. Nas palavras do próprio Setembrini "[...] a literatura não era outra coisa senão isto: a associação de humanismo e política, associação que se realizava com a maior naturalidade, visto o próprio humanismo ser política, e a política, humanismo…"