de Paula 10/07/2021
A mesma velha história
Fiquei instigada a ler este livro por ser uma ficção científica, um dos meus gêneros literários favoritos, além de haver uma aura religiosa envolvida num mundo pós-apocalíptico, o que é uma novidade, já que nunca tinha lido nada parecido e simplesmente adorei!
Antes de falar da narrativa, é importante ressaltar que não se deve ter medo pelo título (que raios é Leibowitz?) ou pelas diversas passagens em latim. Existe nesta edição um apêndice e glossário para facilitar a compreensão, mas sugiro que se leia direto, com o tempo se percebe o contexto, e depois leia-se a tradução. porque assim se mantêm a experiência criada pelo autor. Além disso, o livro é dividido em 3 partes, que funcionam apartadas, por isso, não se apegue aos personagens, porque eles mudarão. A proposta é o acompanhamento da História, não dos seres humanos (e sua costumeira volta ao vômito).
A história se passa alguns séculos após um ataque nuclear, conhecido como Dilúvio de Fogo, onde a Terra são escombros, desertos, nômades selvagens e religiosos que se tornaram memorizadores e copiadores de todo tipo de conhecimento construído pela humanidade e que haviam sido recuperados com muita luta após o período da Simplificação, quando as pessoas que sobreviveram começaram a matar todos os estudiosos e sábios, culpando-os pelos massacres ocorridos na época dos seus pais. Muitos seres humanos, por conta da exposição à radiação, estão deformados e tendo filhos da mesma forma. O paralelo deste momento, Fiat Homo, é com a queda do Império Greco-Romano, destruição da biblioteca de Alexandria, início da Idade Média, fundação e empoderamento da Igreja Católica Romana, também conhecido como a Idade das Trevas - reina o domínio e a ciência é deixada de lado. Tendo isso em mente, acompanhamos a peregrinação do irmão Francis em sua penitência quaresmal para deixar o noviciado e se tornar monge. Enquanto está em sua reclusão no deserto, para meditar e jejuar, ele um dia se depara com um peregrino e deste encontro o noviço recebe a revelação de sua vocação na ordem Albertina do Beato Leibowitz. Junto com a iluminação celestial vem alguns documentos antigos e isso gera muitos transtornos para o irmão Francis de Utah (logo o livro se passa nos Estados Unidos), que tem sua consagração a monge adiada por anos e quando se torna um copista, devido a sua dedicação e localização de peças importantes da Memorabília, ele consegue auxiliara na canonização do São Leibowitz.
A parte Fiat Lux tem referência a um período como o da Renascença, onde o mundo vê a ciência novamente como a saída para diversos tópicos medievais, assim como grandes descobertas são feitas no período. O autor deixa claro que os conhecimentos produzidos pela humanidade têm a tendência de se perder pelo caminho e o que fazemos na realidade é redescobrir para então criar. Isso é uma verdade, considerando as guerras e domínios de mentes obsoletas que optam pela destruição para não perder o poder, ao invés de compreender como aquele conhecimento pode ser aperfeiçoado por gerações futuras. Na narrativa se passaram alguns séculos desde a canonização de São Leibowitz, agora existem líderes que dominam territórios e causam guerras pra ampliar seus domínios, assim como alianças e armamentos como armas de fogo, pólvora e facas. Ao contrário do que aconteceu anteriormente na História, a religião é aliada da ciência, embora existam alguns que compreendem os conhecimentos seculares como blasfêmias. Neste momento acompanhamos a história do abade Dom Pedro e Thon Tadeo, um grande filósofo da natureza (sim, o mesmo termo usado pelos cientistas gregos para definir as ciências naturais e a matemática). O filósofo foi convidado a estudar a Memorabília (sim, a mesma de Francis) e olhar os documentos guardados. Na própria abadia existem monges que estudam a eletricidade e criam uma lâmpada para facilitar esse acesso aos manuscritos copiados, assim como os fac-símiles de São Leibowitz. Existe nesta parte muita discussão sobre o que o conhecimento pode fazer com o ser humano, como controlar os poderosos considerando o avanço científico e como a brutalidade humana acaba prevalecendo à sabedoria. Fiat Lux é muito mais filosófico do que qualquer outro momento, considerando a referência no passado.
A última parte, Fiat Voluntas Tua, se passa por volta de 3800 d.C., onde a humanidade está mais avançada do que nós, do século XXI. Voos e imigrações espaciais são uma realidade. Armas nucleares existem novamente e uma nova guerra nuclear é iminente. Além das semelhanças com o século XX e XXI, esta parte nos traz algumas instituições conhecidas como Vaticano (Nova Roma fica nos Estados Unidos), ONU e organizações parlamentares, como os ministros e até regência (à la monarquia inglesa). Acompanhamos a abadia de São Leibowitz que agora está enviando seus monges para o espaço, para habitarem outro local extraterrestre e levar consigo a Memorabília, a fim de preservar o conhecimento para as próximas gerações, afinal, onde um filho de Deus estiver, ali também Ele estará. A vida na Terra está no fim e os ataques nucleares estão ocorrendo de forma iminente. A discussão principal é sobre o direito à vida, eutanásia e aborto. Uso das tecnologias e inteligência artificial, o que produz consciência é a capacidade de pensar ou a alma? A religião tem seu momento mais impositivo e mandatório, mas a quebra de preconceito que ocorre no final é uma das coisas mais lindas que já li.
O mais interessante do livro, além da história principal, são os assuntos abordados nas entrelinhas. Gosto muito de ler algo e sair com muitos conhecimentos, como saber como funciona o processo de canonização, sobre como a humanidade interpreta elementos naturais e discussões muito importantes que acabam passando desapercebidas quando não vivemos em determinada realidade. A questão do movimento cíclico do tempo, comprovando que a História sempre se repete, o que mudam são os personagens, porque os cenários às vezes são os mesmos. Tudo não passa da mesma velha história.
Menção honrosa ao peregrino, Benjamin ou velho judeu, conforme foi chamado em todas as partes. Esse personagem é imortal, ou vive tanto tempo quanto Matusalém. Suas aparições são sempre pontuais e divertidas. Um personagem deveras marcante. Outra menção que quero fazer é do Poeta do olho de vidro, outro personagem perspicaz e difícil de lidar de tão realista, embora gostasse mesmo de atenção.
Um último comentário que preciso fazer: após ler a biografia do Douglas Adams, escrita pelo Neil Gaiman, descobri que o mochileiro das galáxias era muito fã de Vonnegut, o que torna tudo meio óbvio na escrita do inglês. Porém, numa entrevista ele comenta esse equívoco que os fãs fazem quando sabem dessa predileção por Kurt. Na realidade, e após ler você percebe que ele estava certo. sua principal referência dentro da trilogia de cinco livros é Walter M. Miller Jr. O humor em Um cântico para Leibowitz é realmente muito semelhante
ás aventuras de Arthur Dent, de forma a cobrir com uma leve camada de humor questões complexas e importantes, além do fato da humanidade sempre voltar às suas origens, não importa quanto tempo se passe ou onde se esteja. Foi um dos motivos de "furar" a fila de leitura com esse magnífico exemplar de ficção científica da mais alta qualidade. Se tudo isso não te convenceu, sinto muito, mas está perdendo um baita livro!