Krishna.Nunes 14/03/2021Um livro sobre livros, um livro sobre signosNo final de 1327, um mosteiro beneditino no norte da Itália recebe Guilherme de Baskervile, um monge franciscano inglês, e seu aprendiz Adso de Melk, um noviço alemão. Guilherme havia recebido a missão de promover e conduzir um encontro diplomático entre duas delegações divergentes da Igreja para um debate: de um lado, os partidários de São Francisco, que achavam que Cristo havia sido pobre e pobres deveriam ser seus seguidores; do outro a Igreja romana, que temia perder o privilégio de ser a instituição mais rica de toda a Idade Média caso os ideais franciscanos de pobreza se disseminassem. No meio do confronto entre as duas facções estavam os interesses políticos do imperador, que não se importaria de ver a Igreja perder um pouco do seu poder. Temendo pela segurança do líder franciscano se ele fosse encontrar o papa diretamente, esse debate foi marcado num local neutro, o mosteiro onde a trama se desenrola.
Mas Guilherme, depois de ter dado uma mostra do seu afiado raciocínio lógico-dedutivo assim que chegou ao mosteiro, é logo incumbido de mais uma tarefa: investigar se a morte de um jovem monge poucos dias antes havia sido acidente ou homicídio. Para tanto, recebe autorização do abade para fazer perguntas a quem achasse necessário e também movimentar-se por todo o mosteiro, com exceção da biblioteca. Àquela que era possivelmente a maior coleção de livros de toda a cristandade, somente o bibliotecário podia ter acesso. O mistério aumenta à medida que, diariamente, outras mortes ocorrem e todas parecem ter ligação com a biblioteca.
Inquisição, intrigas políticas, escândalos sexuais e desafios lógicos são alguns elementos dessa trama investigativa que tem como cenário uma próspera abadia no século XIV. Uma boa oportunidade para refletir sobre o bem e o mal, o certo e o errado, à medida que a moral cristã é colocada em xeque, comprovando que o que há por trás dos conceitos e crenças atuais nada mais é do que uma sucessão de indagações que repercutem há séculos no seio da Igreja.
O título do livro, que não é explicado em nenhum momento, faz referência a uma expressão usada na Idade Média para denotar o infinito poder das palavras. E, sendo o autor um especialista em semiótica, utiliza-se do significado dos símbolos e das palavras para remeter a uma discussão medieval sobre signos: o que vale mais são as coisas ou os nomes que damos a elas?
Há uma corrente filosófica segundo a qual os nomes são mais importantes que as coisas. Afinal, se no mundo não existissem mais rosas, ainda restaria para as pessoas a lembrança do nome da rosa.
Segundo o autor, em "Pós escrito a O nome da rosa":
"A ideia de O nome da rosa surgiu quase por acaso e gostei dela porque a rosa é uma figura simbólica tão densa de significados que quase não tem mais nenhum: rosa mística, rosa viveu o que vivem as rosas, a guerra das duas rosas, uma rosa é uma rosa é uma rosa, os rosa-cruzes, grato pelas magníficas rosas, rosa fresca repleta de olor. Com isso o leitor ficaria devidamente sem pistas, não poderia escolher uma interpretação; e, mesmo que tivesse captado as possíveis leituras nominalistas do verso final, chegaria a isso bem no fim, após ter feito sabe-se lá quais outras escolhas. Um título deve confundir as ideias, e não discipliná-las."
No aspecto simbólico, esse romance de estreia de Umberto Eco, lançado em 1980 e que logo tornou-se um best seller, difere da sua adaptação cinematográfica de 1986. Enquanto o texto explora a construção das personagens e o autor despeja erudição e conhecimento histórico em páginas e mais páginas de debates filosóficos e teológicos, o filme precisa se apressar e focar no mistério detetivesco. Às vezes se apressa até demais, encurtando a trama e o número de mortes, e precipitando conclusões que mereciam mais tempo para se desenvolver. Entretanto, com uma das melhores atuações de Sean Connery desde 007, o filme ainda consegue manter o clima sombrio e a intertextualidade dessa inteligente narrativa, trazendo a Igreja e o próprio prédio da biblioteca como personagens principais.
A obra está pontilhada de referências, algumas aparentemente óbvias e outras mais obscuras. O nome de Guilherme de Baskerville pode ser homenagem a "Os cães de Baskerville", de Arthur Conan Doyle, livro da primeira aparição do detetive Sherlock Holmes. E não falta quem veja semelhança entre os nomes dos assistentes Adso e Watson. Também não é impossível que Guilherme seja representação do importante filósofo medieval Guilherme de Ockham. E embora se trate de um romance histórico sem teor fantástico, "O nome da rosa" parece fazer uma ode a elementos do realismo mágico. Jorge de Burgos pode ser uma referência a Jorge Luís Borges, que também ficou cego na velhice, e que em seu conto "A biblioteca de Babel" apresenta elementos que se repetem no livro de Eco, como labirintos, sonhos e truques de espelhos.
Ainda é possível apontar influências niilistas, kantianas e especialmente iluministas, ao passo que a racionalidade de nosso detetive precisa se esforçar para tornar plausíveis as ideias de deus e da fé. Durante a investigação, Eco coloca em discussão o paradoxo entre velhos valores, fechados e místicos, e novas ideias, mais abertas e racionais.
E claro que não se pode deixar de mencionar que ele é um livro sobre livros. Em favor da ciência, do conhecimento, da liberdade do saber e do ensino, e contra a censura. "O bem de um livro está em ser lido. Um livro é feito de signos que falam de outros signos que, por sua vez, falam das coisas. Sem um olho que o leia, um livro traz signos que não produzem conceitos, portanto é mudo."
A despeito de todo o obscurantismo das passagens em latim, do contexto das disputas eclesiásticas, do debate filosófico difícil de compreender e do título misterioso, o vigor dessa narrativa alcançou um sucesso estrondoso. Afinal, o narrador Adso também passa a maior parte do tempo sem entender quase nada e agora, já velho, esforça-se para explicar tudo ao leitor.
Aparentemente, nenhum desses obstáculos é capaz de afugentar o público que ama uma boa estória de detetive. Um serial killer num mosteiro da idade média... quem pode resistir? O destino da biblioteca estava nos planos do autor desde o início da redação e o desfecho dos assassinatos, ainda que possa ser captado com antecedência pelos leitores mais sagazes, não deixa de ser surpreendente.