Anna Azevedo 08/06/2015
O resto é literatura
“NO FINAL ELA MORRE E ELE FICA SOZINHO, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura”
O chileno Alejandro Zambra é aclamado pelo público e pela crítica como uma das grandes sensações da literatura latino-americana atual. No mês passado, a Cosac Naify lançou no Brasil Meus Documentos, aguardada coletânea de contos do autor. No entanto, o assunto de hoje é Bonsai, livro-árvore que Zambra plantou, sem flores ou floreios, no terreno da prosa contemporânea.
À primeira vista, a trama de Bonsai mostra-se até que bastante simples. Eis uma história de um amor; um desses amores em que dois se esbarram e se envolvem e se apaixonam; um desses amores em que dois desistem da leitura, viram a página, rumam para outros livros, histórias outras. Julio e Emilia. Nada muito complicado. A suposta simplicidade do enredo é, porém, uma armadilha em forma perfeita. O parágrafo que dá início à narrativa sugere a projeção completa do livro-árvore. Em verdade, é apenas a sua semente.
O resto é literatura. Desde a primeira página, o autor chileno cerca o leitor em um mosaico de digressões literárias; passagens de um ou outro livro, lido ou inventado, que se proliferam no campos férteis da imaginação ou da vida sexual de um casal leitor.
O resto é literatura. De “Tantalia”, o segundo capítulo de Bonsai, brota metaliteratura. Nele, o conto “Tantalia”, do argentino Macedonio Fernández, é o prenúncio do fim de um amor, esse amor entre dois, dois que poderiam ser Julio e Emilia. O enredo: um casal faz de uma planta o símbolo de seu relacionamento. Com o passar do tempo, o casal se dá conta de que o amor deles fatalmente irá acabar quando a planta morrer. Então, camuflam aquela plantinha em meio a outras idênticas, para que não presenciem o fim. Mesmo com o artifício, a perda e a morte da planta-amor são certas. Uma história, enfim, que os afeta profundamente. Uma história que se transmuta não em morte, mas na vida. A vida dos dois.
O resto é literatura. O resto é Julio. Julio sem Emilia. Um rapaz que começa a escrever um livro que não é seu. Uma representação. Uma projeção de livro-árvore. “Escrever é como cuidar de um Bonsai”.
O resto é literatura. O resto é o bonsai; réplica de árvore e, ainda assim, árvore; réplica de árvore que, ainda assim, se revela completa. Complexa. Árvore mínima, metonímia, de uma árvore maior, um livro maior.
Como a dor que se talha e se detalha, o processo de cultivo do bonsai é metáfora da criação literária. O livro-árvore é, pois, talhado e detalhado em uma escrita cuidadosamente lapidada, sem quês nem porquês. Clara como o que se vê, profunda como o que não. Literatura que se frui como quem admira a beleza compacta de um bonsai.
Zambra cultiva em sua jardinagem uma narrativa concisa, precisa, preciosa, valendo-se da ferramenta quase óbvia da polissemia das palavras. Tal qual Julio (cuja história não termina), “procura a maior sistematicidade, invadido que está por um vislumbre de plenitude”. Sem sobras, faz revelar uma única, porém riquíssima, textura na paisagem. Simples – mas em nada simplório -, o livro-árvore se ergue surpreendente: pequeno em sua grandeza, grande em sua pequenez.
Há quem diga que os “romances de capítulos curtos, de quarenta páginas, que estão na moda” sinalizam a morte das grandes narrativas, árvores da natureza. Alejandro Zambra mostra que a verborragia é dispensável ao romance. Seu Bonsai é o verso mínimo, a prosa poética, o pouco que diz muito. Da podagem, o resto. E o resto é literatura.
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