spoiler visualizarErick233 10/07/2023
A OBRA MAGNA DE RACHEL DE QUEIRÓZ
Determinar qual a obra magna de Rachel de Queiróz tem sido, entre seus leitores, um verdadeiro escarcéu. Embora, o consenso ainda parece distante. Alguns apontam o "Memorial de Maria Moura" a este posto. Outros, "As três Marias". Outros ainda, elegem "Dôra, Doralina".
No entanto, a mim, a distancia que separa "O Quinze" das demais obras de Queiroz ainda parece inalcançável. Embora, seja o romance de estreia da autora, escrito por volta de seus 19 anos, a maturidade da narrativa é digna de um individuo de cem anos. Quem o lê pela primeira vez, sem estas informações iniciais, jamais imaginaria a idade da autora. Ou, até imaginaria que a autora havia tomado um belo porre na fonte de Hélicon.
A sensibilidade profunda e a precisão estonteante são gestos magistrais que permeiam toda a obra. Rachel é um gênio inegável!
Dois polos narrativos se entrecruzam na trama, com certo destaque para Conceição, a professorinha bem a frente de seu tempo, com ideias um pouco distantes das que povoam a imaginação de seus coetâneos. E a do retirante Chico Bento e sua família. Dois mundos distintos, o que chega (Conceição) e o que está desaparecendo (o sertanejo representado em Chico) O romance, é um dos últimos do chamado "Ciclo da Seca". E já dá mostras das mudanças comportamentais que começam a chegar ao nordeste das décadas de 20-30.
A crueza das descrições nos levam as lágrimas.
***
"Chico Bento olhou dolorosamente a mulher. O cabelo, em falripas sujas,
como que gasto, acabado, caía, por cima do rosto, envesgando os olhos, roçando
na boca. A pele, empretecida como uma casca, pregueava nos braços e nos
peitos, que o casaco e a camisa rasgada descobriam.
A saia roída se apertava na cintura em dobras sórdidas; e se enrolava nos ossos
das pernas, como um pano posto a enxugar se enrola nas estacas da cerca.
Num súbito contraste, a memória do vaqueiro confusamente começou a
recordar a Cordulina do tempo do casamento.
Viu-a de branco, gorda e alegre, com um ramo de cravos no cabelo oleado e
argolas de ouro nas orelhas...
Depois sua pobre cabeça dolorida entrou a tresvariar; a vista turbou-se como
as ideias; confundiu as duas imagens, a real e a evocada, e seus olhos visionaram
uma Cordulina fantástica, magra como a morte, coberta de grandes panos
brancos, pendendo-lhe das orelhas duas argolas de ouro, que cresciam, cresciam,
até atingir o tamanho do sol.
No colo da mulher, o Duquinha, também só osso e pele, levava, com um
gemido abafado, a mãozinha imunda, de dedos ressequidos, aos pobres olhos
doentes.
E com a outra tateava o peito da mãe, mas num movimento tão fraco e tão
triste que era mais uma tentativa do que um gesto.
Lentamente o vaqueiro voltou as costas; cabisbaixo, o Pedro o seguiu.
E foram andando à toa, devagarinho, costeando a margem da caatinga.
Às vezes, o menino parava, curvava-se, espiando debaixo dos paus,
procurando ouvir a carreira de algum tejuaçu que parecia ter passado perto deles.
Mas o silêncio fino do ar era o mesmo. E a morna correnteza que ventava
passava silenciosa como um sopro de morte; na terra desolada não havia sequer
uma folha seca; e as árvores negras e agressivas eram como arestas de pedra,
enristadas contra o céu.
Mais longe, numa volta da estrada, a telha encarnada de uma casa brilhava ao
sol. Lentamente, Chico Bento moveu os passos trôpegos na sua direção.
De repente, um bé!, agudo e longo, estridulou na calma.
E uma cabra ruiva, nambi, de focinho quase preto, estendeu a cabeça por
entre a orla de galhos secos do caminho, aguçando os rudimentos de orelha,
evidentemente procurando ouvir, naquela distensão de sentidos, uma longínqua
resposta a seu apelo.
Chico Bento, perto, olhava-a, com as mãos trêmulas, a garganta áspera, os
olhos afogueados.
O animal soltou novamente o seu clamor aflito.
Cauteloso, o vaqueiro avançou um passo.
E de súbito em três pancadas secas, rápidas, o seu cacete de jucá zuniu; a
cabra entonteceu, amunhecou, e caiu em cheio por terra.
Chico Bento tirou do cinto a faca, que de tão velha e tão gasta nunca achara
quem lhe desse um tostão por ela.
Abriu no animal um corte que foi de debaixo da boca até separar ao meio o
úbere branco de tetas secas, escorridas.
Rapidamente iniciou a esfolação. A faca afiada corria entre a carne e o couro,
e, na pressa, arrancava aqui pedaços de lombo, afinava ali a pele, deixando-a
quase transparente.
Mas Chico Bento cortava, cortava sempre, com um movimento febril de
mãos, enquanto o Pedro, comovido e ansioso, ia segurando o couro descarnado.
Afinal, toda a pele destacada, estirou-se no chão.
E o vaqueiro, batendo com o cacete no cabo da faca, abriu ao meio a criação
morta.
Mas Pedro, que fitava a estrada, o interrompeu:
— Olha, pai!
Um homem de mescla azul vinha para eles em grandes passadas.
Agitava os braços em fúria, aos berros:
— Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha! Desgraçado!
Chico Bento, tonto, desnorteado, deixou a faca cair e, ainda de cócoras,
tartamudeava explicações confusas.
O homem avançou, arrebatou-lhe a cabra e procurou enrolá-la no couro.
Dentro da sua perturbação, Chico Bento compreendeu apenas que lhe
tomavam aquela carne em que seus olhos famintos já se regalavam, da qual suas
mãos febris já tinham sentido o calor confortante.
E lhe veio agudamente à lembrança Cordulina exânime na pedra da estrada...
O Duquinha tão morto que já nem chorava...
Caindo quase de joelhos, com os olhos vermelhos cheios de lágrimas que lhe
corriam pela face áspera, suplicou, de mãos juntas:
— Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um
taquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra
eles que eu matei! Já caíram com a fome!...
— Não dou nada! Ladrão! Sem-vergonha! Cabra sem-vergonha!
A energia abatida do vaqueiro não se estimulou nem mesmo diante daquela
palavra.
Antes se abateu mais, e ele ficou na mesma atitude de súplica.
E o homem disse afinal, num gesto brusco, arrancando as tripas da criação e
atirando-as para o vaqueiro:
— Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez,
dar-se tripas é até demais!...
A faca brilhava no chão, ainda ensanguentada, e atraiu os olhos de Chico
Bento.
Veio-lhe um ímpeto de brandi-la e ir disputar a presa; mas foi ímpeto
confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe o ânimo.
O homem, sem se importar com o sangue, pusera no ombro o animal
sumariamente envolvido no couro e marchava para a casa cujo telhado
vermelhava, lá além.
Pedro, sem perder tempo, apanhou o fato que ficara no chão e correu para a
mãe.