Dri Ornellas 21/12/2020Maravilhoso!A elegância do ouriço nos apresenta Renée, uma concierge viúva que nutre grande paixão pela arte e leitura, mas mantém seus hábitos sofisticados em segredo dos moradores ricos do prédio onde trabalha e faz de tudo para eles apenas terem contato com comportamentos estereotipados de uma concierge pobre e inculta. E Paloma, uma menina super inteligente de 12 anos que planeja se matar no seu aniversário de 13 anos. ela não enxerga sentido na vida e acredita que todos os adultos estão presos numa existência dentro de um aquário, limitados por suas escolhas medíocres que só servem para reafirmar ao mundo a boa imagem que eles forjam de si mesmos. As duas procuram um significado para existir e o livro conta a história do encontro desses dois modos diferentes de procurar um sentido para a vida.
Enquanto Renée tem uma existência limitada por seus recursos financeiros e já nasceu com um destino social (quase que) determinado, Paloma, tem uma vida ramificada para várias possibilidades de futuro por pertencer a uma família rica mas, ainda assim, não consegue vislumbrar nada de atraente para viver e pretende se matar e incendiar o apartamento dos pais, enquanto Renée criou um mundo particular que, apesar de dar sentido à sua existência, a mantém isolada do mundo.
Ao discorrer sobre suas leituras de livro sobre fenomenologia, Renée afirma que o que nos separa da bestialidade é a nossa percepção da existência da nossa consciência. Pensando a partir disso, poderíamos dizer que Renée e Paloma são as únicas que não são bestializadas dentro de seus respectivos grupos sociais, pois são as únicas que se enxergam fora de seus próprios aquários ou as únicas que conseguem distinguir a própria existência de um aquário.
Há algumas reflexões sobre estética, arte e subjetividade e como a forma que construímos o significado desses conceitos se enrosca ao sentido que construímos para a nossa própria vida. No livro, podemos perceber uma dicotomia entre os grupos para exemplificar como nos relacionamos com esses conceitos: Paloma e Renée que, apesar de conhecedoras das mais diversas formas de cultura, escondem esse traço dos outros e criticam todos a sua volta (moradores do prédio) que se aproveitam do fato de suas classes sociais os colocarem automaticamente numa posição culta, mesmo quando eles não fazem ideia do valor cultural de um determinado objeto ou mesmo nem tem interesse por eles. Entretanto, para esses, a questão não é conhecer, é aparentar saber ou saber superficialmente o bastante para manter o status de classe detentora da cultura sofisticada.
O livro também é sobre a tensão de querer ser singular num mundo que nos enxerga e nos instrumentaliza a partir de nosso lugar social e não a partir de quem somos: nascemos em um aquário que nos limita, mas, e se o aquário em que nascemos não for onde habita nossa essência? E o aquário não é apenas social, mas temos também um aquário formatado pelo nosso inconsciente baseado em nossas vivências pessoais e com o outro. Esses dois aquários existem de forma interdependente formando o que julgamos ser nossa singularidade. Nosso erro é nos convencermos de que tudo o que nos acontece é circunstancial e baseado em nossas escolhas, quando na verdade, o mais provável é que estejamos nos limitando por essa suposta singularidade moldada.
E como poderíamos fugir disso? Se nós, humanos e primatas, temos um destino determinado pelo nosso lugar dentro da sociedade, pela biologia e pelas nossas pulsões, como expandir esse aquário e dar um sentido individual às nossas realizações? Como escapar da nossa animalidade? A melhor resposta seria pela via da arte, essa beleza sem função, objeto sem fim e que torna a nossa existência tolerável. É nela que podemos encontrar ou vislumbrar as brechas de saída do aquário.
Renée e Paloma começam uma amizade a partir da chegada de um novo morador ao prédio. Esse novo encontro na vida das duas causa um estremecimento em todas as certezas que elas tinham: é nesse momento que o aquário em que elas vivem começa a rachar...