spoiler visualizarKein 17/07/2014
Rick Deckard acorda em mais um dia na depressiva São Francisco de um mundo pós-guerra atômica, onde poucos sobraram além daqueles que preferiram sair do planeta e viver em colônias fora da Terra. Rick fala com sua mulher não tão depressiva apenas por conta do sintetizador Penfield que melhora seu humor, vê como está sua ovelha elétrica que fingi pastar no terraço do quase deserto condomínio, dentre tantos outros na mesma situação, e vai ao seu trabalho como caçador de androides onde recebe suas recompensas por cada “cabeça” capturada. Porém neste dia seis andróides de um modelo bastante avançado acabam por escapar e agora Rick recebe esse serviço, o qual já havia sido passado para um caçador mais experiente que falhou em sua missão, acabando no hospital. Daí em diante Rick passa a correr atrás de seus alvos enquanto pensa em suas necessidades e futilidades, suas conquistas e suas aflições, suas dúvidas e suas convicções.
Como toda e boa ficção científica, temos uma paralelo muito claro com a vida que levamos, e quanto mais a tecnologia evoluí e a vida continua, mais essas histórias se fazem necessárias, atuais e aterrorizantes. Em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? Philip K. Dick é muito bem sucedido em nos escancarar problemas sociais de diversos níveis.
Logo que a história começa e Deckard ao acordar conversa com sua mulher Iran sobre o seu vazio e como esse estado só é superado através de um sintetizador que possuí a capacidade de lhes imputar sentimentos, que sem isso, apenas o vazio de suas vidas e de seu prédio já a levam aos pensamentos mais tristes. “Sorte” deles terem seu sintetizador Penfield. Porém a situação só denota a artificialidade de sentimentos que aquele mundo vive, não muito diferente do nosso, obviamente. Eles necessitam de máquinas, eles são máquinas, apenas seres orgânicos tão bem mapeados que conseguiram transformar seus sentimentos em códigos. Para completar, ao subir no terraço, Rick acaricia sua ovelha elétrica, um simulacro de suas vontades fúteis e uma falsa redoma de aparência de felicidade e bem-estar para os demais. Sua obsessão em ter uma ovelha de verdade é absurda, algo que ele persegue o tempo todo, uma busca por algo natural em um mundo tão artificial. Mas ele tem de se contentar com sua ovelha elétrica, símbolo de um consumismo em substituição de verdadeiro afeto. E não é isso que mais vemos hoje em dia? Com quantas ovelhas elétricas não nos deparamos diariamente? Celulares caros que mal utilizamos, carros absurdamente ostensivos que estão acima de nossas necessidades, todos os tipos de adornos e “conquistas” que tentam expressar quem somos mais do que nós mesmos.
Uma sociedade de tanta artificialidade e consumismo normalmente levará ao mundo de diferenças, os que mais têm contra os que menos têm. Isso é bastante caracterizado com o personagem John Isidore, um pobre coitado que vive sozinho e por conta de um teste de Q.I. é considerado abaixo dos demais, chamado de “Especial”. Isidore vive na periferia, em seu próprio e solitário “buraco” em um dos tantos apartamentos de um deserto edifício. A sua vida é de trabalho banal e sem esforço mental, vive por si e pelo mercerismo (religião com muitos seguidores). O livro fala muito de segregação, sejam dos androides tratados como uma ameaça, seja daqueles como John Isidore tratados como inferiores. Um dos primeiros sinais de que Isidore vive em uma espécie de “casta” diferente é a televisão que faz propagandas direcionadas àqueles considerados Normais, e não para Especiais, ou seja, você só se vê representado e parte ativa deste mundo quando consegue preencher determinadas características previamente estabelecidas. E John não é um desses. Outros que sofrem com essas restrições são os androides, que apesar de a história ao longo de seu decorrer mostrar que viviam pacificamente e facilmente incluídos, um simples teste é suficiente para mostrar que estes devem ser eliminados, desconsiderando talvez o surgimento de sentimentos e vontades verossímeis. A segregação em nosso mundo se dá de forma bastante similar, políticas de segregação sempre aparecem disfarçadas de arma de segurança, como na intensa preocupação com a fronteira americana na intenção de barrar mexicanos, onde uma das justificativas é a preservação da segurando pública, sendo que essas mesmas pessoas consideradas perigosas são aquelas que se sujeitam aos menos rentáveis trabalhos, sendo assim parte das engrenagens destes sistemas. Este é o exemplo mais claro, mas já vimos muito disso em tantas atitudes xenófobas pelo mundo, que nada mais são do que o medo do desconhecido, algo que facilmente seria derrubado com o simples entendimento e interação com ambas as partes. Deckard mesmo demonstra isso quando percebe estar em um elevador com um androide e com um humano, e no fim tem mais afeição pelo androide.
A segregação como forma de isolamento e solidão de John Isidore, e sua carência por companhia se mostram fortemente quando alguns dos androides aparecem em seu prédio. Ele sai de seu buraco e força com todas as suas ferramentas sociais uma interação com eles, tendo atitudes até mesmo de rebaixamento de si mesmo, aceitando alguns tipos de humilhação.
Toda essa confusão e diferenças, culmina em um ato de violência, a caça. Deckard apesar de questionar todas essas atitudes, já está dessensibilizado demais e focado em conquistar sua ovelha de verdade, e cumpre seu papel de matar todos. Um mundo de aparências que fez suas vítimas, um mundo em que a imagem externa é uma máscara para sentimentos totalmente artificiais, além de uma forma de diferenciar seus habitantes e criar uma sensação de eterno vazio. Deckard caça máquinas, mas não vive sem seu sintetizador de sentimentos Penfield. Essa simples hipocrisia na vida do protagonista me resume todo o livro, um homem que sem questionar mata seus semelhantes, apenas porque estes foram marcados como alvos.