Eduardo 04/06/2022
Terra Sonâmbula: a reflexão sobre a guerra por meio da poética de Mia Couto
"Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada." (COUTO, 1992, p. 9) Com essa profunda frase - que, por si só, resume toda a história -, Terra Sonâmbula se inicia.
Escrito a partir dos destroços deixados pela guerra civil em Moçambique, que se estendeu de 1977 a 1992, o romance, publicado em 1992 por Mia Couto, viaja entre o real e a fantasia, o belo e o catastrófico, a guerra e as memórias de um garoto que, um dia, pôde viver em paz. Como um dos maiores representantes da literatura portuguesa da África, Terra Sonâmbula se faz importante para entender, de maneira poética, como se deu as consequências causadas pelos conflitos pós-independência que assolaram Moçambique no século XX, trazendo à tona as ricas realidades da cultura africana que vai além do materialismo, elevando-se ao espiritismo.
Antônio Emílio Leite Couto, conhecido simplesmente por Mia Couto (1955), é um jornalista, escritor e poeta moçambicano - famoso por seus neologismos -, ganhador do Prêmio de Camões da Literatura no ano de 2013, o qual nomeia autores da língua portuguesa que tenham contribuído, por meio das suas obras, ao enriquecimento dos patrimônios literário e cultural que envolvem o idioma. No Brasil, Couto ocupa, como sócio correspondente, o sexto lugar da cadeira nº 5 da Academia Brasileira de Letras. Terra Sonâmbula foi o primeiro romance em prosa (muito) poética do autor e deteve, em 1995, o Prêmio Nacional de Ficção da Associação dos Escritores Moçambicanos; foi considerado um dos melhores livros africanos do século XX. Além disso, o livro é uma dentre as nove leituras obrigatórias para o vestibular Fuvest 2023, responsável por selecionar candidatos para ingressão à Universidade de São Paulo (USP) - uma das melhores da América Latina.
Os significados atribuídos ao cenário que se originou graças à guerra parte da visão de dois principais personagens: Muidinga - um garoto refugiado, que vivera forçosamente em um ônibus destroçado, seu lugar de refúgio - e Kindzu - um rapaz que viajara incansavelmente à procura do filho de uma mulher, com quem desenvolvera afetividade no decorrer da estória. Kindzu narrou parte da sua vida em cadernos que, posteriormente, serviram de memórias póstumas resgatadas por Muidinga. Juntamente com Tuahir - um velho que o fez companhia durante toda a narrativa -, o garoto viajava de forma tão fantástica pelos cadernos de Kindzu, que, por vezes, trazia à sua realidade os fatos narrados pelo falecido.
Terra Sonâmbula nasceu, portanto, de alternâncias e controvérsias, executadas de maneira mágica e encantadora, que mesclam acontecimentos entre duas narrativas, as quais, no início, se divergem; no entanto, ao final, se encontram e constroem a verdade por trás do segundo maior mistério apresentado pelo romance: a procura pelo filho de Farida.
Por fim, é importante analisar que, por narrar os fatos sempre frisando mostrar a imensidão da catástrofe que envolve todo o cenário do enredo, os leitores de Terra Sonâmbula, assim como Muidinga, são levados, por meio da leitura, a um longo, emocionante e instigante caminho que mostra o quão destruidora uma guerra pode ser. Emocionante porque as tragédias narradas por Couto têm muita coisa em comum com a realidade em que vivemos (mortes em nome da ganância, abusos sexuais, pobreza, etnocentrismo), e instigante porque, a todo momento, com o "vai e volta" entre a realidade de Muidinga e as histórias de Kindzu, é imprevisível quaisquer acontecimentos que hão de ocorrer - inclusive, a descoberta do filho de Farida, que ocorreu de forma inesperada e contribuiu para a descoberta do primeiro grande mistério que circunda o livro: o porquê do título "Terra Sonâmbula".