Felipe - @livrografando 19/10/2016
Boca do Inferno: formação do Brasil estritamente europeia
Ana Miranda é uma literata, mas também procura entender como a sociedade brasileira se formou,ambientando a história na Bahia seiscentista das devassidões, da corrupção, dos vícios, da fornicação, da miséria. Mesclando o contexto histórico com a ficção, a autora oferece ao leitor caminhos para entender o país e suas raízes. É importante lembrar que Salvador (Cidade da Bahia) era a capital da colônia, e portanto seus costumes poderiam se constituir em cosmopolitismos.
A história se centra na rivalidade de duas facções: Menezes e Ravasco. Os Menezes são os que estão no poder, usando e abusando dele, deixando a Bahia na miséria. Os Ravasco são aqueles que almejam o poder e se vingarem dos Menezes, por dissidências de ambos no passado. Esta tensão aumenta e culmina na morte do alcaide Teles de Menezes, o que faz com que esse acontecimento seja um divisor de águas na rivalidade entre os dois grupos. Levando isso em conta, isso não é muito distante da realidade, pois hoje em dia temos duas grandes facções no país: o PCC e o Comando Vermelho. Ambos se desentenderam e acabaram novamente se dividindo. Isso mostra que o livro da Ana Miranda discute a questão da violência no cotidiano, ressaltando-se as suas temporalidades.
Para além de uma Bahia desregrada e violenta, existe uma Bahia dos preconceitos, das poesias, das angústias, dos conflitos, refletindo a mentalidade barroca da época. Isso está presente principalmente na questão da figura do Gregório de Matos e o seu pensamento acerca da figura da mulher. Para ele, a mulher só serve para fornicar e ter prazer, não só inferiorizando a figura feminina como também demonizando. Maria Berco, empregada de Bernardo Ravasco e ama de sua filha, Bernardina, é um exemplo da mentalidade da época e do imaginário do inferno e do paraíso. O momento em que ela resolve vender o anel que roubara da mão do moribundo Teles de Menezes a faz ficar em conflito entre ser fiel ao patrão ou tentar sair da miséria, o que não chega a acontecer.
Na narrativa do livro está também o conhecido padre Antônio Vieira, um dos responsáveis pelo proselitismo cristão na Colônia. Principal mentor da facção dos Ravasco, Vieira é um homem poderoso não só pelo fato de ser padre, mas também pelo fato de ser imune e por isso não deve ser atacado, recaindo isto em Bernardo Ravasco. Ele é um dos exemplos expoentes sobre a questão de como a cristandade, para Ana Miranda, se fez na colônia.
Escrito em 1990, Ana Miranda suscita uma série de discussões sobre a questão da formação da sociedade brasileira, bem como a sua peculiaridade. No entanto, ela escreve em um período em que esse momento fica designado majoritariamente ao europeu, embora as visões indígenas estivessem brotando e talvez isso explique a ausência dos indígenas e africanos como protagonistas na formação da nossa história. Ressaltando-se esses problemas, Boca do Inferno é um romance que se deve investir não só por causa da linguagem fluida e acessível, como também por causa dos temas e das reflexões que ele proporciona.