Flávia Menezes 15/08/2023
A INSUSTENTÁVEL VERDADE POR TRÁS DA INDIFERENÇA NAS RELAÇÕES
?A insustentável leveza do ser? é um romance filosófico que entrou para a lista dos 100 melhores livros de todos os tempos segundo a ?Revista Bula? deste ano, conforme a classificação feita pelo site ?The Greatest Books?. Publicado em 1984, e escrito pelo autor e pensador tcheco Milan Kundera, o livro recebeu uma adaptação para filme em 1989.
A história começa falando sobre o ?mito do eterno retorno?, um dos mais intrigantes e misteriosos axiomas propostos na teoria filosófica de Friedrich Nietzsche, de que a vida se repete infinitas vezes, como em um looping. Logo de início, Kundera nos propõe refletir em como nesse eterno retorno existe um grande fardo por trás das escolhas que fazemos. Mas se existe um peso por trás deste fardo, seria mais leve se abster de escolher?
Nesta história somos apresentados a quatro personagens adultos, Tomas, Tereza, Franz e Sabina, dos quais conheceremos todos os detalhes da história de vida de cada um, até entendermos onde, em cada uma dessas vidas, o eterno retorno acontece. E tenho que dizer: Kundera trabalhou brilhantemente nessas histórias familiares. A epigenética certamente está muito orgulhosa dele!
Escolhas... Estando diante de dois caminhos, o que você faz? Você escolhe? Ou fica em cima do muro levando tiro dos dois lados, até que a vida escolha por você? Não sei como você reage em situações como essas, mas nessa história os personagens são confrontados o tempo todo com esse dilema.
Um dos personagens em quem mais fortemente sentimos essa questão da dicotomia, é o Tomas. Parece que em momento algum ele consegue decidir, sem precisar se colocar em dúvida diante de duas opções. E a sensação que fica é que ele nunca tem certeza de nada, e precisa dessa constante dúvida para justificar sua ausência de fazer escolhas, para permanecer confortável em cima do muro. Se é que existe mesmo conforto para quem permanece neste lugar!
De fato, o que me deixou bastante incomodada neste livro, é que a questão das escolhas foi colocada como se um caminho fosse o certo, e o outro o errado. Ou um seria bom, enquanto o outro seria ruim. Mas isso não existe! Porque se um caminho é muito melhor do que o outro, então você concorda comigo que já deixou de ser uma escolha, para se ter uma única opção? Fazer escolhas não é sobre bom ou mau, certo ou errado, mas sim sobre renúncias!
Quando eu escolho um caminho, eu estou automaticamente renunciando a seguir por outro. E por isso mesmo é que devemos refletir com cautela antes de tomar uma decisão, pesando prós e contras, e às vezes até consultando pessoas sábias. Especialmente quando se trata de algo para a vida toda.
Confesso que me senti muito frustrada com a forma como o Kundera tratou o Franz nesta história. Ele foi o único que teve a coragem de escolher, indo até contra todas as convenções sociais, e no final, o Kundera não deu o mínimo crédito a ele por esse feito! Isso foi muito frustrante, e confesso que não gostei nada do desfecho da história dele, porque a verdade era que o Franz nem sequer havia feito uma escolha. Sua decisão veio da única opção que ele tinha de lutar para ser mais feliz e mais amado. E o que há de errado nisso? Mas o Kundera tirou a beleza daquele que se posiciona diante da vida, o fazendo voltar para um lugar de sofrimento. E eu me pergunto: para que?
Já o Tomas é um personagem que me lembrou muito o protagonista de ?Lolita? do Nabokov, o Humbert Humbert, porque ele nos causa tanta repulsa e raiva, que parece até se tratar de uma pessoa real. Se bem que essa facilidade com as quais as nossas emoções são despertadas, é exatamente pela quantidade de realismo que é colocado nesses personagens.
E foi muito desconfortável acompanhar a forma como ele falava das suas conquistas sexuais para a Tereza, fazendo com que ela se sentisse como se fosse apenas mais uma na vida dele. Amá-lo e estar ao lado dele não fazia dela alguém importante. Era como se os esforços dela não servissem para nada, e o ciúmes por vê-lo oferecer às outras o mesmo que oferecia a ela... era revoltante de ver. E até peço desculpas aqui se o meu comentário pode ser muito pesado, mas eu penso que ninguém no mundo deveria ser (mal)tratado assim, ou achar isso algo normal.
Algumas vezes, quando o Tomas começava a falar com carinho da Tereza, parecia que enfim ele iria perceber o laço forte entre eles, mas logo em seguida ele já se ressentia, como se ela fosse fazer algo contra ele, e por isso mesmo não merecesse seu amor.
De fato, esse é o ponto. Sabe aquele ditado que diz: a melhor defesa é o ataque? Então! Quem não ama por achar que ninguém merece seu amor, porque nunca dará o devido valor, no fundo só tem medo mesmo é de ser magoado. Mas amor tem mesmo a ver com mágoa? Ou é o medo de nos magoarmos que nos faz magoar alguém que amamos (e que também nos ama)?
Mas apesar de tudo, eu preciso dizer que o final do Tomas não poderia ter sido melhor. Pelo visto, ele era o preferido do Kundera, porque a maneira como o autor trabalhou na sua história, trouxe até um pouquinho de redenção para ele. E esse foi um momento realmente muito bonito.
Já as personagens femininas, eu confesso que senti muita superficialidade, e um certo excesso de passividade e fraqueza nelas. Algumas coisas foram até bem desenvolvidas, mas já outras eu achei que deixou a desejar.
Uma outra coisa que me incomodou, foi aquele excesso de sonhos por parte da Tereza (e alguns até bem mal interpretados. Freud e Jung certamente se reviraram nessas partes!), me fez pensar que ela só estava ali para o Tomas. Ela só estava vinculada a ele, e não tinha uma ?vida própria?. Não era um personagem por si só.
Já a Sabina, essa pelo menos ainda teve um bom desfecho, porque ela é aquele tipo de pessoa que ficou tanto tempo em cima do muro, que a vida passou, e quando ela desceu, acabou não tendo mais que fazer escolha alguma!
Aliás... aí está o meu ponto de maior incômodo nessa história toda: esses personagens estavam tão preocupados em escolher, e faziam disso algo tão pesado, quando a maior tragédia da vida é não poder fazer escolhas.
E nessa passividade que é um fardo muito maior do que o de fazer escolhas, o desejo que fica é de poder voltar a sentir esse peso, porque de fato ele significa que um mundo de novas possibilidades está se abrindo. E então escolher! E poder enfim voltar a se sentir leve de novo!