Steph Mostav
19/06/2020Gente humilhada, ofendida e oprimidaSão muitos os paralelos entre Humilhados e ofendidos e Gente pobre, não só pela posição dos dois na carreira do Dosta (um deles foi seu romance de estreia, o outro o romance do retorno após os anos aprisionado). Ambos tratam de questões sociais em Petersburgo, ou ainda, da análise psicológica que os efeitos dessas questões sociais tem sobre os personagens. Nos dois casos, são personagens que representam a "gente oprimida" pela miséria, pela fome, pelo trabalho exploratório, pelas calúnias contra as quais não podem responder com dignidade porque não estão em posição de privilégio. Em um dos trechos do livro, o protagonista Vânia, que tem muitos traços autobiográficos, é questionado a respeito dos temas dos livros que escreve: por que ele fala de pessoas pobres, funcionários falidos, porões sujos e não a respeito do esplendor e da beleza dos salões da elite russa? A resposta do personagem é simples, mas nos diz muito a respeito do projeto de literatura do autor: entre a "alta esfera" ele só encontra o tédio e não há nada o que ele possa fazer por eles, porque já tem tudo. Já os miseráveis, os endividados, os doentes e famintos eram (e ainda são) excluídos da literatura, ou representados através de caricaturas que não os mostram como pessoas complexas, dotadas de ideias, sentimentos e contradições. Outro elemento autobiográfico é a resposta de Vânia à crítica que ele sofria por se "esgotar literariamente" e perder sua saúde ao escrever em prazos apertados e sem tempo para corrigir os desleixos: ao contrário de escritores abastados (como Turgueniev), ele dependia do dinheiro das publicações para sobreviver. Humilhados e ofendidos tem uma coleção de personagens memoráveis que certamente inspiraram suas obras futuras: tanto o ingênuo e irresponsável Aliocha quanto o teimoso velho Nikolai Serguiêitch, a tenaz Nelli, que sofreu tantas injustiças ainda criança, Maslobóiev, o tipo malandro e o personagem mais interessante do livro, o príncipe Valkóvski. Como antagonista, ele cumpre muito bem o papel: é dissimulado, egoísta, interesseiro, cruel e até sádico e protagoniza todas as melhores cenas do livro, de confronto direto ou indireto com sua figura cínica, sua ausência de moralidade e sua lógica individualista e contrária à toda tentativa de mudança na sociedade. Meu capítulo preferido, o décimo da terceira parte, é inteiro dedicado ao diálogo entre o príncipe e o protagonista. Ainda que não tenha a maturidade de estilo e profundidade temática dos seus cinco grandes romances, Humilhados e ofendidos não deixa de merecer todos os elogios. É meu décimo livro lido do Dosta e é impressionante: o cara não erra uma.