alineaimee 16/03/2015Publicado em 2013, A Desumanização é o sexto romance do autor português Valter Hugo Mãe. Ambientado na Islândia, o romance é centrado na jovem Halldora, que narra como ela e sua família lidam (ou tentam lidar) com a vida após a morte prematura de Sigridur, sua irmã gêmea. Enquanto Halldora tenta superar essa perda que, para ela, é a perda de uma parte de si própria, a família e as pessoas próximas tratam-na como se ela estivesse parcialmente morta, em processo de apagamento, como se fosse um retalho equivocado dessa partida.
A mãe de Halldora, consumida de revolta e culpa, projeta sua frustração na filha viva, agredindo-a física e verbalmente, empenhando-se em fazer com que a menina não viva plenamente, com que se desumanize de forma gradativa, num tributo desesperado à memória da adolescente morta. Incapazes de compreender e superar essa ausência, os membros da família perdem a capacidade de se comunicar e de se reestruturar. Por isso, o pai se isola no mar, a mãe se mutila e Halldora se anula.
"As palavras são objetos magros incapazes de conter o mundo. Usamo-las por pura ilusão. Deixámo-nos iludir assim para não perecermos de imediato conscientes da impossibilidade de comunicar e, por isso, a impossibilidade da beleza". — Pg. 27
A comunicação entre eles se dá apenas de forma simbólica, através de atos ora violentos, ora generosos, mas predominantemente desorientados. A partir dessa ruptura familiar, a menina de doze anos se vê enredada num relacionamento tão absurdo quanto ilógico, cujos desdobramentos, no entanto, a ajudarão a amadurecer e a compreender melhor a si mesma e às pessoas próximas.
Um dos aspectos mais belos do romance é a relação que Halldora tem com seu pai, e que ambos estabelecem com a palavra. Para consolar a menina sozinha e negligenciada, o pai lhe recita os poemas que escreve para entender os próprios sentimentos. Deslumbrada com tais poemas, Halldora toma conhecimento de possibilidades antes insuspeitadas, começa a sonhar, a entrever a possibilidade de reinvenção da própria existência.
"Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Ofereciam-nos o que não nos acontecia." — Pg. 40
"Andávamos como pessoas com luzes acesas dentro. As palavras como lâmpadas na boca. Iluminando tudo no interior da cabeça. Como o cristal natural do Einar, que o deixava mágico. As palavras deixavam-nos mágicos. Eram os livros que traziam feitiço e punham tudo a ser outra coisa. A boca elétrica, dizia alto. Eu e o Einar escutávamos estudando o mundo". — Pg. 125
A solidão e a imensidão da ausência tornam necessária a recriação da linguagem, pois esta não dá conta do absurdo doloroso que consome os personagens. É preciso restaurar o caráter inaugural da linguagem, dar-lhe poderes redentores, fugir às limitações do prosaico e se entregar às múltiplas possibilidades do poema, à liberdade do poema, que conferirá esperança, que os dignificará. Renascer pela palavra, fazer-se poema, fazer-se indivíduo possível.
"O pequeno tanque branco, pensei, podia ser uma página. Os peixes debatendo-se podiam ser um poema. Chamei o meu pai. Disse-lhe que os poemas deviam ser assim, como caixas onde estivesse tudo contido e onde, por definição, pudéssemos entrar também. Caixas grandes, se fosse necessário. Adequadas ao tamanho do que se quisesse dizer. Do que se quisesse guardar. E os peixes como versos que podemos tocar. Pai. Que podemos tocar. Esses versos convence-me, os outros, não". — Pg. 32
"Eu perguntei: posso chamar a vida de poema. E ele respondeu: podes chamar a vida de poema. Ou podes chamar de normalidade. A vida é a normalidade. O poema é normal.
Onde há palavra, há deus. Onde nasce a palavra, nasce deus. Todos os outros lugares são ermos sem dignidade". — Pg. 45
A arte como redentora e reveladora de potencialidades ressurgirá, ainda, associada a outras incongruências do espírito. Embora reverencie o poder criativo do homem (ou talvez por isso mesmo), o romance quer apontar, também, a coexistência do sublime e do terrível na psique humana, o potencial a um só tempo destrutivo e criativo de um espírito em crise. Por esse motivo, menos que um romance que busca apaziguar, A Desumanização quer aproximar esses dois polos, estabelecer-lhes uma equivalência que evidencie o mais profundo da natureza humana. Se a beira da loucura serve de antessala à aniquilação, ela também pode fazer surgir a transcendência.
Embora o autor comente, no posfácio, a grande admiração que tem pela cultura da Islândia, o que poderia, por si só, servir de justificativa para a escolha da ambientação, as paisagens inóspitas desse país se adequam muito bem à atmosfera retratada no romance. As montanhas, geleiras e fiordes são, de certa maneira, um espelhamento das angústias dos personagens: as montanhas poderiam servir de alegorias para a magnitude da dor e para a inclemência dos fatos; as geleiras, para a esterilização das ligações existentes; os fiordes, para a insistência humana de sobreviver em meio às circunstâncias terríveis. A solidão e o isolamento exacerbam a consciência de si mesmo, obrigando os personagens à autoanálise, ao enfrentamento das próprias fraquezas.
Esse drama denso e extremamente simbólico é narrado com uma linguagem que é, apesar de simples, muito poética — repleta de imagens, metáforas e alegorias. É um romance que replica o paradoxo do tema na forma, na medida em que se utiliza da beleza linguística para investigar o sofrimento mais intenso.
"Se a minha irmã morta engravidasse, seria como a terra estar grávida. Uma ilha grávida. A Islândia inteira. Para construir uma criança ou um monstro, uma pedra ou um poço de novo fogo. A ilha grávida poderia ser normal. Era um poema muito intenso". — Pg. 63
Com originalidade e força, Valter Hugo Mãe demonstra, nesse seu mais recente livro, que a dor mais aguda e debilitante é também um caminho possível para o entendimento de si e do mundo.
site:
http://www.little-doll-house.com/2015/03/a-desumanizacao.html