Leticia_gg 01/05/2023
O inferno é a solidão
"O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer."
Depois que terminei esse livro, desci para almoçar. Minha desorientação era tamanha que esquentei o feijão sem me lembrar de colocar por cima o arroz. Esquentei o feijão puro, porque estava perdida. "A desumanização" me deixou assim. Perdida, pequena. Cheia de palavras cujo significado pareciam me engolir e sufocar.
Todos os meus pensamentos em torno do que eu havia lido culminavam no título, e todas as respostas que eu tentava formular culminavam nessa citação com a qual introduzi a minha resenha. O que é desumanizar? É destituir do caráter humano. Mas o que é que nos torna verdadeiramente humanos? O que nos torna humanos é a nossa capacidade de contar, de narrar, de explicar e perguntar coisas sobre as quais as abelhas, os cachorros e as ovelhas não se perguntam.
Mas não há história se não há quem te ouça. Você não existe se não há quem te veja. Da mesma forma que a beleza só existe porque alguém a compartilhou com palavras, as palavras são capazes de fazer alguém desexistir. São capazes de fazer de "Halla" a "menos morta".
O que "A desumanização" me ensinou foi isso. Que as palavras tem poder de matar e de manter alguém vivo. Que desumanizar o outro pela palavra é também desumanizar a si mesmo. Que na nossa infinita incapacidade de dialogar a dor e o sofrimento, desexistimos uns aos outros.
Acho que nunca vou superar o protesto genial que é expressar a capacidade desumanizadora das palavras usando... palavras; colocar o maior alvo de desumanização dialogando conosco, num paradoxo humanizador. VHM conseguiu criar um dos exercícios de metalinguagem mais deliciosos que já tive o prazer de apreciar. Mas, afinal, os melhores livros são assim, falam "como se inventassem modos de falar. Para percebermos melhor o que, afinal, era reconhecido mas nunca fora dito antes. Os melhores livros inauguravam expressões. Diziam-nas pela primeira vez, como se as nascessem. Ideias que nasciam para caberem nos lugares obscuros da nossa existência".