z..... 31/08/2016
Edição da Nova Cultural com adaptação de Clarice Lispector (publicada em 1987)
Acredito que essa obra foi inspirada pelo tino comercial de Verne. Além da inspiração (ou homenagem) à concepção de náufragos no estilo Robson Crusoé, tema de sucesso entre leitores da época, tem o ressurgimento de personagens de romances anteriores, aproveitando o enigma que foi criado em torno deles. São eles o Ayrton (degredado em "Os Filhos do Capitão Grant") e o Capitão Nemo (talvez o principal personagem da obra verniana). Contextualizado como era, o autor traz também referências ao cenário de época, como a Guerra Civil Americana (Secessão), morte do presidente Abraham Lincoln, o despontar da ciência no século XIX e relatos sobre o mundo insular da Oceania.
Por essas e outras o romance foi atrativo e instigante. Ainda é, né! Não está entre meus preferidos do autor, mas tem seus atrativos habilmente correlacionados.
No que caracteriza a obra, referente ao estilo Robson Crusoé de vida, o livro não tem a vitalidade do Defoe e há uma proposta de visão diferenciada sobre a terra.
Robson é o colonizador, descobridor de novas terras, sujeitando-a a seu domínio e governo que representa como súdito, imprimindo suas ideologias (como a de escravocrata). É um mundo em descoberta e o livro tem fascínio pelas novidades, mostrando o triunfo do colonizador sobre elas.
Já nessa obra as personagens são submissas a suas concepções de mundo. É o homem moderno, que discorda de seu próprio governo (afinal fugiram da guerra por não concordarem) e são capazes de transformações e maravilhas como a ciência apontava naquele século. O autor priva eles de qualquer ferramenta no início, diferentemente do Robson, e estes sobrevivem por sua engenhosidade e conhecimentos científicos (principalmente em relação ao engenheiro Cyrus). O romance tem exageros nesse aspecto, numa alusão ao poder transformador da ciência, pois em cerca de sete meses já tem um palácio de granito, criação de animais, desenvolvimento da agricultura, ferramentas criadas por processos metalúrgicos, barco, artefatos cerâmicos e até explosivos. Enfim, vemos o triunfo da ciência e não do colonialismo.
Separei um parágrafo do capítulo 8 da segunda parte sobre isso: "Sem demora, a 24 de março, estaria fazendo um ano que o balão os levara até aquela costa desconhecida. Eram, então, simples náufragos. Agora, graças ao tino e à sabedoria do seu chefe e graças à inteligência de cada um, eram verdadeiros colonos, equipados com armas e ferramentas, sabendo tirar da natureza todo o proveito que ela pode dar."
Semelhança com o Robson? Sim, mas diferente nas disposições e percepções de mundo.
O outro aspecto importante na obra, sobre o ressurgimento de dois personagens, tem conotação de humanização destas, cercadas até então de enigmas.
O Ayrton teve uma espécie de depuração em sua vida marginalizada. Não me estendo mais que isso (ainda não li a obra em que ele surgiu).
O capitão Nemo é o principal ponto desse livro, quem agrega valor. A história é um pouco insossa e é o capitão quem desperta em primeiro momento a busca ao livro. Afinal, é a obra onde Verne conta sua história, satisfazendo a curiosidade criada no "Vinte mil léguas submarinas". O que dizer mais, temos um olhar na história da maior personagem do Verne. Só uma dica: o príncipe indiano Dakkar. Daí para frente confere quem é o enigmático Nemo. O que o motivou.
A obra, pela vontade do autor de incrementar e trazer uma familiaridade em algo contemporâneo, acaba misturando até demais. A ilha, por suas caracterizações, às vezes parece situar-se nos trópicos do Atlântico e em outros momentos na Oceania. Certamente está no segundo ambiente, mas fala de jaguar, capivara, misturando com canguru e orangotango.
As personagens são: Os cinco náufragos (o engenheiro Cyrus Smith, o repórter Gideon Spillet, o marinheiro Pencroft, o jovem Harbert (que algumas traduções apontam como filho de Pencroft) e Nab (negro assistente de Cyrus Smith); as personagens que ressurgem do universo verniano (Ayrton e Nemo) e as mascotes Top (cachorro) e Jup (orangotango). Há também o aparecimento de um grupo de piratas do qual Ayrton fez parte.
Em relação à tradução, o livro torna-se fluido com capítulos curtos e isso é positivo. Pelo que apurei , essa tradução foi feita entre o final dos anos sessenta e início dos setenta. Predispõe linguagem mais conservadora, mas o ponto refutável está na má escolha para determinar algumas coisas, não percebendo-se uma familiaridade. Exemplos: galináceos tetrazes, descrição de cadiê para uma animal parecido com capivara, jacamar e às vezes a designação de tigre e jaguar para o mesmo animal, que naquela região não poderia ter essa insinuação de onça. Pode até ser rigorosamente técnica na tradução, mas de escolha menos apropriada. Só não gostei disso no livro, especificamente na adaptação, com todo respeito à grande escritora.
Foi a segunda vez que li. Mais do que claro que gostei da obra, mesmo não estando entre as minhas cinco preferidas do autor. Aspecto relativo, concordamos que é uma história a seu modo instigante. Todo admirador do Verne, ou quem leu o "Vinte mil léguas...", tem que dar uma conferida.