spoiler visualizarRegis 02/10/2023
Um grande épico, narrativa memorável e personagens marcantes
E o Vento Levou foi lançado em 1936, Margaret Mitchell era escritora e jornalista, escreveu o livro no auge da revalorização dos confederados e de sua romantização.
A introdução do livro mostra o quadro em que vivia o sul dos Estados Unidos após a derrota na Guerra de Secessão, a chamada; Era da Reconstrução, quadro esse em que Margaret Mitchell nasceu e em qual firmou suas crenças. Era uma mulher racista por formação, escreveu o romance através das lentes de seu meio e de seu tempo.
O livro conta a história dessa guerra do ponto de vista dos perdedores... então é justo se indignar com o racismo e a segregação contidos no romance, e mesmo sendo um livro de ficção é quase impossível lê-lo sem entender que E o Vento Levou contribuiu para popularizar a imagem favorável de uma sociedade preconceituosa e segregacionista.
Sobre os personagens:
Scarlett O'Hara é egoísta, mesquinha e intolerante... mas também é forte, dinâmica, determinada, assertiva, apaixonada e possuidora de uma habilidade de enfrentar os problemas de frente, em uma época que as mulheres não podiam ser nada além de bibelôs.
Rhett Butler possui todas as características de Scarlett, mas ele é homem, teve a chance de estudar, ler, viajar e conhecer o mundo. Sabe o que quer e luta por isso com unhas e dentes, ele faz zombarias, diz o que pensa, está sempre à frente de todos; entende o mundo como ele é e tira vantagem disso sempre que pode. Rhett, apesar de ser sulista como os outros personagens, compreende a hipocrisia do universo cheio de regras em que nasceu, ele escarnece disso e vive de acordo com suas próprias leis.
Melanie Hamilton surpreende quase sempre com seu jeitinho meigo, justo e firme. Ela possui uma força diferente, o tipo de força que a faz ser ouvida sem esforço e sem julgamentos. Melly é o tipo de pessoa que consegue o que quer sem precisar exigir nada. Sua capacidade de ver o lado bom em tudo e extrair o melhor das pessoas mostra que sua serenidade e amabilidade são armas poderosas.
Ashley, é o Ashley... É difícil falar dele sem sentir que ele foi covarde e insosso o livro inteiro. Ashley é um homem erudito, culto, sonhador; possui as características dos cavalheiros do sul, mas com uma sensibilidade exacerbada que o trasforma em um homem incapaz de fazer qualquer coisa que abale seu senso de honra e moral e isso é enraivecedor, enervante e insuportável. Ele não sabe o que fazer consigo mesmo, depois que seu mundo acabou, seu derrotismo e sua incapacidade de falar claramente, de forma que Scarlett possa compreender, é a parte mais falha de seu caráter.
Além dos personagens principais a história nos apresenta vários personagens secundários interessantes e que participam em algum momento do desenvolvimento da narrativa: tia Pittypat Hamilton, Charles Hamilton, Tio Henry Hamilton, India Wilkes, Mommy, Tio Peter, Prissy, Suelen O'Hara, Gerald O'Hara, Helen O'Hara, Will, Belle Watling, Frank Kennedy...
A política, a Guerra de Secessão, e os assuntos da sociedade do pós guerra também são personagens importantes no enredo e em vários momentos deixam de ser pano de fundo do romance para figurarem como peças centrais na história de forma pertinente e Peremptória.
Sobre a história:
Ashley é um cavalheiro; um sonhador que pertence a antiga civilização sulista que foi extirpada do mundo com a guerra, ele representa o passado, um sonho e o medo do futuro. A realidade a sua frente o faz se encolher em sua concha mostrando sua incapacidade de ajudar Scarlett e sua própria família a recomeçar.
Rhett sempre viu o mundo com clareza desde que foi deserdado; ele representa o futuro, luta por seus interesses e enxerga a realidade da decadência do sul e toda pompa e normas que regem a sociedade com rudeza; ele está infinitamente mais preparado para o pós guerra, a vida e a nova ordem que se estabeleceu.
Rhett e Ashley são opostos que fazem parte da vida de Scarlett e ela nunca os entendeu completamente.
Sem que ela percebesse Rhett sempre a esteve estimulando e a preparando para ser forte e abraçar sua força interior e não deixar sua chama se apagar, sempre esteve presente nos momentos difíceis e disposto a ajudá-la e guiá-la; enquanto Ashley sempre falou à Scarlett de forma incompreensível, mantendo-a refém de um sentimento que a impulsionou, que guiou seus passos, mas que também a fez acreditar e perseguir um fantasma, sem que nunca conseguisse alcançá-lo realmente.
No fim, quando os obstáculos que ela acreditava que a impediam de ser feliz foram removidos, a verdade fica transparente e Scarlett percebe que foi enganada... que perseguiu um sonho, e que seu amor infantil (não passava disso; de uma admiração de criança, de uma obsessão de menina) foi completamente em vão. E ela acaba por descobrir que quem deveria amar e quem a amava, ela deixou escorrer por entre seus dedos.
Scarlett na adversidade foi forte, pragmática e desbravadora, carregou nas costas sua família: Melly, Ashley e Tara sem se abater. Ela é uma personagem forte, estimulante e, apesar do egoísmo intrincado em sua personalidade, ela salvou todos a sua volta de alguma maneira.
Scarlett é egoísta, egocêntrica, incoerente, e muito mais, mas todas as coisas que ela fez quando feitas por um homem passam como justas. Rhett faz o que ela fez e ainda assim é exaltado. Inclusive, Frank ( que se casou com Scarlett) passa metade de um capítulo discorrendo sobre como a ela não se encaixa no que é esperado de uma mulher, retratando perfeitamente a época e a visão sulista e masculina de que mulheres não foram feitas para pensar. Mas é muito engraçado vê-lo escandalizado com a ousadia dela trabalhar e se mostrar mais inteligente que ele nos negócios.
As interações de Scarlett e Rhett são as melhores entre personagens de romance; a cafajestice dele e o egoísmo intempestivo dela transformam o cenário da história em dinamismo puro. Esse livro não tem nenhum momento insosso ou desinteressante.
Um dos pontos polêmicos do livro é o surgimento da ku Klux Klan, e o jeito que o grupo age: fazendo parecer certo e honrado matar negros enforcados dando um contexto de justiça contra a "opressão" que os "pobres brancos" sofrem desde a libertação dos negros; que agora podem caminhar "livremente" pelas ruas, "participar" da política e "decidir" seus próprios destinos.
Segundo Scarlett, os negros são: "criaturas de parca inteligência. Como macacos ou criancinhas (...) infantis em termos de mentalidade, facilmente manipulados e de longa data acostumados a receber ordens."
Em alguns momentos do livro a narrativa se torna quase que um manifesto sobre a superioridade branca sulista, onde os negros libertos são descritos como bestas alcoolizadas, estupradores de brancas indefesas. E esse apelo é apenas para justificar uma escravidão idealizada, que existiu somente na mente dos senhores de escravos.
Conheci primeiro o filme, que assisti algumas vezes, e fazendo a leitura percebi que foram poucas as alterações feitas na adaptação, mostrando que esse é um romance avassalador em qualquer mídia, mas fazendo a leitura; ganha-se com o aprofundamento maior dos personagens e com o prazer proporcionado pela escrita primorosa de Margaret Mitchell, o que torna a história; mais poderosa, marcante e memorável.
Apesar do contexto da época e dos assuntos sensíveis abordados no livro a narrativa de Margaret tem o poder de conquistar o leitor e mexer de forma profunda com as emoções, fazendo com que a experiência de realizar essa leitura seja inesquecível. Eu gosto imensamente do filme e o livro me conquistou da mesma maneira, sendo assim recomendo para todos esse romance épico.
*Deixo claro que é uma leitura cheia de gatilhos e discursos racistas, mas que retrata a realidade do pensamento da época, no sul dos Estados Unidos, de forma precisa.