Paulo 26/04/2020
É impossível não relacionar o livro ao filme Blade Runner. O clássico de ficção científica nas telinhas é uma influência tão marcante que se tornou maior do que o próprio livro. Mas, a diferença entre os dois meios é muito grande. Diria até que livro e filme acabam se complementando.
Rick Deckard é um caçador de recompensas. Seu trabalho é "aposentar" andróides rebeldes. Ele tem uma esposa depressiva e uma ovelha elétrica no telhado, motivo de vergonha para o casal. Deckard deseja muito ter um animal de verdade, mas eles são caros nesse mundo. Mas, Rick vê que sua vida pode melhorar quando o caçador mais experiente é ferido ao caçar uma nova série de andróides: os Nexus-6. Sua semelhança com humanos é tão grande que mesmo testes de reconhecimento sofisticados não conseguem dar uma resposta absoluta.
Dick questiona neste livro o que nos torna humanos. Será que determinados sentimentos não podem ser copiados por uma máquina experiente? E o que os andróides pensam a respeito de nós? A capacidade dos Nexus-6 de copiarem determinadas habilidades humanas é tão grande que mesmo um caçador de recompensas experiente como Deckard tem sua fé questionada. Algumas cenas demonstram o terror por trás disso> a sutileza com a qual uma das andróides expressa seus sentimentos em uma apresentação musical; a paixão e o desejo que Rick sente por Rachel Rosen; e a emboscada na falsa delegacia quando Rick não era capaz de dizer quem era humano.
Como diz Deckard, se os andróides são capazes de copiar até mesmo a criatividade por trás da composição de uma música, o que resta ao homem? Dick humaniza muito os andróides e nos deixa realmente confusos ao longo da trama. Algumas reações dos andróides são semelhantes demais como os ciúmes de Rachel, mais adiante na história. O autor faz também uma forte crítica social. Através das guerras criamos um mundo decadente e desesperançoso onde casais precisam comprar animais quase extintos para demonstrar status. O nível de absurdo de Deckard ansiando ter um avestruz ou uma coruja apenas para ser bem visto pelos vizinhos é gigante. O leitor percebe como ter um animal elétrico desperta vergonha para quem possui e preconceito de quem rodeia. A esposa de Deckard precisa recorrer a uma máquina para despertar sentimentos. É a demonstração definitiva de quebra de contato do homem com o mundo que o cerca. Assim como em outras obras, Dick ilustra sua falta de fé na evolução do homem como um ser inteligente. O homem é capaz de destruir, de arrasar e de parasitar o planeta. Aos escolhidos (os detentores de recursos) resta abandonar o planeta. Para o resto sobra conviver com uma esfera oca e terminal.
"Naquela época, a precipitação era esporádica e altamente variável; alguns Estados estavam quase livres dela, outros tornaram-se saturados. As populações errantes se moviam à medida que a Poeira se movia. A península sul de San Francisco foi o primeiro lugar a ficar livre do pó, e um grande número de pessoas respondeu ao fato indo morar ali; quando a Poeira chegou, alguns morreram e o restante partiu. J. R. Isidore ficou."
A ambientação do livro é radicalmente diferente do filme. A obra de Ridley Scott me remete diretamente a Neuromancer, de William Gibson. A trama do livro tem uma essência mais intimista e voltada para o estudo do homem como um ser racional. A empresa responsável pela fabricação dos Nexus-6 é pouco citada no livro enquanto que no filme ela forma uma grande sombra que assola o protagonista.
Preciso citar também os cabeças-de-galinha, as pessoas afetadas pela radiação resultante da Guerra Terminus. Isidore só quer ser útil para alguém e quando os três andróides se escondem em sua moradia é como se sua existência se completasse. A crença em uma divindade absoluta é o que mantem sua sanidade. Dick quis apresentar com John Isidore o que acontece com alguém que tem sua crença negada por argumentos racionais. A cena da aranha que tem suas pernas arrancadas diante de um Isidore horrorizado é emblemática. Alguns questionam que o personagem não tem muito sentido para a trama principal. Discordo... é com obras como Valis e Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas que Dick consegue trabalhar suas ideias sobre a importância da religião para o homem. Pelo que eu pude assimilar a religião é o que dá motivos para a existência de um indivíduo, na visão do autor. A religião é um dos componentes para a esfera de realidade que cerca este indivíduo. Quando Deckard descobre a realidade por trás da caixa de emoções, ele vê sua sanidade desaparecendo. Aonde agora ele poderia ancorar sua fé? Em quem buscar orientações?
De certa forma, Dick critica a necessidade de acreditar em um poder superior. Mas, ele não enxerga o homem desprovido de religião. Mais do que isso: ao nos afastarmos da fé, perdemos nossa inocência. Buscamos soluções científicas que não preenchem o todo. Nesse aspecto, John Isidore tem muitas similaridades com Horselover Fat, protagonista do livro Valis.
O livro é uma obra clássica que, independente de se ter visto o filme, deve ser lida como uma obra encerrada em si mesma. A prosa de Dick sempre nos provoca confusão, estranhamento e reflexão. Nos faz questionar sobre o que nos torna humanos.
site: www.ficcoeshumanas.com.br